Um dos livros de Fernando Sabino que destaca o humor presente em suas obras é “O Menino no Espelho” (1982), um livro infanto-juvenil, que agrada a todas as idades. O enredo não apenas provoca risos, mas também evoca sentimentos profundos, já que aborda de forma gentil e não ofensiva o humor intrínseco nas complexidades da vida e das relações humanas.
Este livro considerado uma das joias do gênero literário, devido à maneira como evoca de maneira significativa a memória, explora o enigma do tempo, reflete sobre a carga da saudade que ressoa a perda de entes queridos e a sensação de vazio, além de demonstrar a força catalisadora de uma visão que transcende o âmbito material e se torna um elemento central na narrativa. É a fase que marca a maturidade e profundidade de sua carreira literária.
“O Menino no Espelho” é uma história encantadora que cativa os leitores com sua capacidade de transportar os adultos de volta à infância e proporcionar às crianças uma experiência de leitura alegre e imaginativa.
ONTEM EU ERA UM MENINO
(Texto adaptado ao universo de Fernando Sabino)
@toniramosgonçalves*
Foi ao revirar as caixas da despensa que o velho encontrou a foto. Retirou os óculos do bolso da camisa para vê-la melhor. Não conseguindo, caminhou apoiando-se na bengala até a pequena janela, de onde entrava um sol de verão. Ao identificar no retrato a mãe, a avó, uma tia e a si próprio ainda criança, não conseguiu evitar uma breve gargalhada, seguido de uma tosse. Ele era um menino magro, um esqueleto revestido de pele. O cabelo estava no estilo “tiro de guerra”, raspado bem rente dos lados e curto por cima.
Controlando a emoção ao rever uma foto considerada perdida, caminhou ofegante até uma cadeira, onde se sentou. Quanto mais vivemos, mais solitários nos tornamos. Não se recordou do dia daquela foto; a memória falhava constantemente, mas recordou-se da época quando tinha seus dez anos.
Lembrou-se de que, ao sair da escola, costumava tocar a campainha das casas e sair correndo. Quantas vezes atravessou a linha férrea a caminho de casa, onde, por várias vezes, aguardava a passagem do trem. Queria fazer igual a Geraldo Viramundo, um personagem de um dos livros que sua tia costumava ler e que conseguiu parar um trem, afinal, todo super-herói consegue fazer isso. Para sua sorte, o trem nunca passava naquele horário.
Num daqueles dias, viu na esquina, no alto da rua, o preto doido que a maioria dos meninos provocava. Diminuiu o passo e abaixou a cabeça, olhando-o de soslaio, fingindo não vê-lo. A figura esguia, com pernas esticadas e braços agitados, descia pelo passeio do outro lado da rua. Vinha resmungando algo, já que os doidos costumam falar sozinhos. Assim que passou por ele, vendo que a distância entre os dois era segura, virou-se, colocou as duas mãos ao redor da boca e gritou:
– Ô Tibeiço!!!!
Ao ouvir o grito, na calma da rua, o preto virou-se em sua direção, enfurecido, e já foi saindo no seu encalço.
– Tibeiço é sua mãe, seu pestinha.
Correu em disparada, rindo e gritando:
– Tibeiço, Tibeiço, Tibeiço.
– Esperaí, seu saco de merda. Quero ver me chamar de Tibeiço perto de mim.
Ao olhar para trás, viu que ele se aproximava muito rápido e, como o final da rua era muito íngreme, desviou na primeira esquina que o levava à Rua Bandeirante Desbravador, uma rua da zona boêmia. Olhou para trás e viu o doido procurando por algumas pedras no chão. A rua não tinha calçamento. Ouviu uma delas zunir perto de sua orelha e cair logo à sua frente. Correu o mais rápido que pôde. E antes de desaparecer de sua vista, ainda ouviu a promessa:
– Sua hora vai chegar, baixinho. Vai vê o estrago que vou fazê n’ocê.
Chegou em casa ofegante e todo suado. Largou a mochila no lugar de sempre e irrompeu pela cozinha.
Ao abrir a geladeira só encontrou água gelada. Vasculhou o armário em busca de uma bolacha ou biscoito e percebeu que não havia mantimentos. A mãe devia ter ido à casa da avó. Ultimamente, por estar doente, não conseguia trabalhar com frequência. Sempre voltava de lá com algo na sacola. Sua salvação, para não ficar de barriga vazia, foi o bule com café frio que estava sempre ali sobre a mesa, e encontrar um pão duro como pedra em uma das latas de conserva. Pegou o pão e deu uma mordida. Ainda mastigando, dirigiu-se ao seu quarto, tirou a camisa branca do uniforme e deitou-se na cama onde acabou adormecendo, de canseira ou fome.
Não soube quanto tempo dormiu, mas no seu sonho ouviu alguém chamando longe:
– Toninho, oh, Toninho? – ouviu o chamado da mãe, vindo de algum lugar.
– Oi, mãe… – respondeu baixinho, no automático, sem ao menos abrir os olhos.
– Acorda, menino… – continuou a mãe. – O “Seu Tibeiço” tá aqui me ajudando com os mantimentos. Ajuda nois aqui.
Ao ouvir o nome do doido varrido arregalou os olhos e num pulo de gato escapou pela janela.
– Não posso ir agora, mãe! – exclamou enquanto atravessava o quintal em grande velocidade. – Vou colher umas folhas de Ora-pro-nóbis para a tia, lembra-se? Vou levar para ela.
E sem olhar para trás, desapareceu entre as folhagens do mato.
* Toni Ramos Gonçalves
Escritor, editor, ex-presidente e um dos fundadores da Academia Itaunense de Letras. Graduando em História e Jornalismo.