Que história é essa: Sonho de Carnaval

0
311
Sílvio Bernardes

O sonho do menino Kiko era, um dia, desfilar trepado num carro alegórico do carnaval da sua cidade, que era, segundo a propaganda feita pelos próprios foliões, como o melhor de Minas Gerais – e, quiçá, do Brasil. Era uma vontade que se renovava a cada ano. Kiko sonhava com o carro alegórico da escola de samba “Clube dos Zulus”, aquela maravilha toda feita em dourado e preto, com uma bateria nota dez e onde desfilavam as mulheres mais bonitas do mundo. E naquele carnaval, aliás, muito antes, logo no início do novo ano, o desejo do menino Kiko se intensificava. Já se imaginava com uma fantasia luxuosa – ou talvez nem tanto – cheia de lamê, plumas e paetês dourados e pretos, subindo a rua Silva Jardim até à Praça da Matriz. Ele haveria de sambar em cima do carro e jogar beijos para a plateia e lançar para o alto serpentinas coloridas e atirar milhares de confetes por todos os lados, enquanto a Dunga cantava maravilhosa e deslumbrante: “Quem quiser ver/ suba à Praça da Matriz/ Que a Escola vai relembrar/ O Quilombo dos Palmares/Rei Zumbi fez reinar…”.

Kiko era um menino pobre, engraxador de sapatos na Praça da Matriz, vendedor de picolés, contador de mentiras, um sujeitinho pequetito, engabelador e cheio de nove horas. Morava ali pelos lados do Cantinho do Céu, num barracão de meia água, amarelo desbotado,  junto com a mãe e um perrada de irmãos. Não era o caçula da família, muito menos o mais velho, que era o Grilo, que já tinha penugem de barba e outras insinuações de pelos… que não vêm ao caso, e que trabalhava de entregador de pão na padaria do Zé Caetano. Kiko era o quarto daquela molecada composta de minino-home e minina-muié.

Na época do carnaval os meninos passavam quase sempre num galpão que existia na rua São José, no centro, onde eram feitos os carros alegóricos, os adereços, estandartes e outros petrechos dos Zulus e isso atiçava mais ainda o desejo do Kiko de estar no desfile, envergando as cores da sua escola de samba. Os instrumentos da bateria eram feitos na funilaria do Afonso Franco. O couro vinha do Curtume Santa Isabel. As fantasias eram quase todas confeccionadas na casa da Dona Maria do Carmo do seu Adelino Pereira Quadros, na rua Estrada de Ferro, pertinho da estação ferroviária. A vida era boa. Muito boa até. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos. Acho que foi o poeta Drummond quem escreveu isso.

E veio o carnaval propriamente dito. O Almir Sapateiro já estava nas ruas, pelo menos ali para os lados da Praça do Capeta, com a sua Miss Itaúna, fazendo charme e mostrando as pernas magricelas para rapazes e moças que passavam. O Mampu envergava sua roupa de Rei Momo e o Landinho  vinha com a sua nova fantasia de Lampião tocando terror no povo na Praça da Lagoinha. As baterias das escolas de samba Unidos da Ponte, Pães, Castores, Zulus e dos blocos estavam a mil, cada qual querendo mostrar o seu melhor carnaval. O menino Kiko estava por aí, zanzando pra aqui e pra acolá, no meio desse furdunço festivo. E até à tarde de sábado não havia nenhum sinal de que ele poderia, enfim, realizar a sua maior fantasia, de subir a avenida (rua Silva Jardim) com esplendor e glória montado num carro alegórico. À noite experimentou sua roupa, apropriada para o desfile – e para a sua condição, digamos, socioeconômica – e em vez da Escola de Samba Clube dos Zuluz, certamente a campeã do carnaval, foi juntar-se ao bloco de sujos “Farrapos da Lagoinha. Vestia um misto de anjo e diabinho, bem próprio para o que era na vida real longe da folia de Momo. Na subida da rua Antônio de Matos, rumo à Praça da Matriz, alguém o convidou  para trepar num carro de boi e servir de pajem ao casal de tipos populares Purina e Seu Zé Cambista, que já se se encontrava devidamente instalado naquele arremedo de carro alegórico. Foi apoteótica sua entrada  na Praça da Matriz, dançando alegremente em riba do carro de boi, ao lado da Purina e do Seu Zé. Se faltaram plumas e paetês e o preto e dourado dos Zulus, houve beijos e muitos sorrisos para a plateia E, também, confetes e serpentinas, ainda que sem as cores com as quais sonhava. Mas, que alegria. Que festa. Que carnaval!