SOMBRIO – O poeta da zona boêmia

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@toniramosgoncalves*

Dolores saiu do consultório médico com uma expressão séria. E não era para menos: o médico havia aumentado a dosagem do remédio para pressão e os exames mostravam um pré-diabetes. Enfiou as receitas na bolsa, amassando-as enquanto resmungava algo incompreensível.

Na rua, o sol ardente da manhã daquele início de inverno só a fez resmungar ainda mais. Atravessou a rua e caminhava lentamente, perdida em seus pensamentos, quando reparou em um sebo quase escondido entre os prédios comerciais. Olhou de um lado para o outro, conferiu as horas no relógio de pulso e decidiu entrar. Apesar da visão precária, ainda tinha prazer em ler um bom livro, de preferência poesias, com letras bem grandes. A jovem atendente lhe mostrou o local onde ficavam os autores poetas.

Revirou a bancada entulhada de exemplares usados até encontrar um volume que lhe chamou a atenção. O livro a fez lembrar de um rapaz, vizinho de cerca, um ótimo ouvinte com quem confidenciava os segredos nas horas vagas da juventude. Onofre era raquítico, asmático crônico, com uma tosse seca inseparável, quase sempre adoentado, exigindo muitos cuidados médicos da família. Sua estranha aparência rendeu-lhe o apelido de Sombrio.

Um dia antes de Dolores ser expulsa de casa por seu padrasto, presenteou o amigo com um livro de poemas. Emocionado ao receber o presente, Sombrio, apertando-o nas mãos e quase sem voz, prometeu:

– Vou decorar todos!

Alguns anos depois, em meados da década de 80, os frequentadores da zona boêmia tiveram sua curiosidade despertada por um acontecimento diferente: a presença bizarra e estranha de um homem que começou a aparecer na praça do Capeta e nas esquinas da rua Gonçalves da Guia com alguma constância, sempre à noite.

A figura, com certeza, era ou seria um dos sujeitos mais feios que já haviam aparecido por ali, e havia em seu olhar um toque sinistro que lembrava os atores de filmes de terror. Vestia sempre um casaco de veludo roxo, abotoado até o pescoço, que contrastava fortemente com o amarelado de seu rosto cansado.

Impassível aos olhares assustados à sua volta, ele ficava parado nas esquinas por horas a fio. Algumas crianças se enroscavam assustadas nas saias das mães. Nem o temível Cabo Solange, conhecido por espantar principalmente os rapazes com seu cassetete, teve coragem de abordá-lo. Muitos começaram a dizer que ele era o próprio diabo, e algumas pessoas juraram que ele murmurava pragas inaudíveis quase o tempo todo.

E foi numa noite de chuva fria, com pouco movimento no bar da Greta, que a estranha figura apareceu na porta. As garotas de programa, entretidas nas fofocas, bebiam descontraídas e despreocupadas, esperando a hora de fechar o estabelecimento. Teria havido um silêncio total se não fosse a radiola tocando Amado Batista. Trazia consigo um enorme guarda-chuva e vestia o habitual casaco roxo, o que o tornava ainda mais assustador.

Passados alguns segundos, ele, envolto na luz rosada e mal iluminada do salão, acomodou-se entre cadeiras de vários estilos e, tirando um pequeno livro de dentro do sobretudo, começou a declamar um poema de Augusto dos Anjos:

“Como um fantasma que se refugia

Na solidão da natureza morta,

Por trás dos ermos túmulos, um dia,

Eu fui refugiar-me à tua porta!”

Com uma paixão nunca vista e, ao terminar praticamente sem fôlego, ele foi surpreendentemente aplaudido pelas mulheres, especialmente por Dolores, que o reconheceu nos primeiros versos. Ao ser expulsa de casa e sem ter para onde ir, ela acabou na zona boêmia da cidade.

– Meninas – clamou Dolores, toda empolgada – este é o Sombrio, um amigo de infância. Ele é um grande declamador. Não se assustem, pois este é o jeitão dele mesmo.

Com isso, Sombrio foi aos poucos sendo adotado pelas prostitutas. A partir daquele dia, ele começou a frequentar o bar quase todas as sextas-feiras, onde, após recitar alguns poemas, recebia como gratificação o direito a trinta minutos de amor grátis, embora nunca utilizasse esse benefício.

Porém, um ano depois, ele não aparecia com tanta regularidade. Sua saúde estava declinando. O coitado, enfraquecido pelas constantes crises de tosse, na última vez que recitou para as garotas de programa, tentou manter sua paixão, mas sem sucesso. Não conseguiu levar até o fim o vibrante poema “Versos Íntimos”, também de Augusto dos Anjos.

– Esses poemas ainda vão me matar! – dizia lançando um olhar triste e cansado na direção de Dolores.

Sombrio morreu naquela mesma noite ao chegar em casa. Segundo conhecidos e os poucos parentes, não teve nem tempo para despir o inseparável casaco, onde guardava o livro no bolso. Um infarto fulminante acabou com tudo.

No sebo, trinta anos depois, Dolores não acreditava no que via. Tentava esquecer aquele passado, especialmente quando ele doía. O presente que dera ao amigo voltava às suas mãos, pelo destino ou pelo acaso, trazendo lembranças difíceis de apagar, de caminhos obscuros onde existiam apenas medo, solidão e, quem sabe, amores não correspondidos. Sombrio sempre encontrava uma maneira de reaparecer. Então, ela passou os dedos suavemente ao reconhecer sua própria caligrafia na dedicatória escrita com simplicidade na primeira página:

“Ao amigo e sombrio Onofre…”

* Toni Ramos Gonçalves (Não é o Global)

Professor de História, Escritor, Editor, ex-presidente e um dos fundadores da Academia Itaunense de Letras – AILE.