Sílvio Bernardes
Os dias pareciam mais cinzentos e sem brilho, mas as noites, ah, as noites, eram claras e de lua bonita. Eram os tempos de quaresma de antigamente. A quaresma vinha sempre depois do carnaval, que era um tempo de alegria e de muitas lembranças legais, já os longos dias que vinham depois… Na quaresma a gente ficava assim meio diferente, as brincadeiras eram mais comedidas e as maldades, próprias da molecada, não eram tão grandiosas. O povo mais velho tinha muito respeito e muita cisma com aquela época e no final desse período acontecia a semana santa, a morte e a paixão de cristo que entristeciam toda a cristandade. “Tempo de coisas sagradas, de guardar os dias para os jejuns, as penitências, as novenas e o pensamento no bem”, pediam os mais velhos. “Menino, olhe as palavras, bate nessa boca porca antes que a mão não chega!”. Creio que a época pedia que a gente andasse na linha e evitasse maiores desatinos. E, de vez em quando, a molecada respeitava isso. Ou fingia que o fazia porque boa bisca a gente não era.
Os quintais viviam cheios de goiabeiras – e de goiabas deliciosas, brancas e vermelhas. A meninada adorava aquelas frutas, mas, dizem, os lobisomens também apreciavam as mais bitelas e apetitosas frutas da goiabeira. De manhã, na quaresma, os quintais amanheciam repletos de marcas da passagem do lobisomem por aquele lugar: pedaços de goiaba esparramados, folhas amassadas, galhos quebrados e pelos (e pegadas) do bicho pelo chão. “Juro que vi, por essa luz que está alumiando o dia. Era um baita assim, sô!”.
Um povo contava uma história de arrepiar. Teria sido numa encomendação de alma. Um grupo de devotos saía às ruas à noite (de quaresma) para encomendar almas que “não foram nem para o céu e nem para o inferno, mas que permanecem no purgatório”, batendo matraca e tudo mais. Ao ouvir a movimentação do grupo e o som da matraca, a mãe pedira ao rapaz para não olhar, não abrir a janela, ficar dentro de casa apenas rezando. Mas o moço, curioso, abriu a janela e um daqueles devotos da procissão se aproximou, olhou-o com um olhar frio e inquiridor. E lhe entregou uma vela. Dentro de casa, o rapaz se deu conta de que aquilo não era uma vela, mas um osso de gente. No outro dia, ainda com muito medo, o jovem foi à igreja e contou tudo ao padre que benzeu aquele osso e o orientou que deveria fazer. Levar o osso ao cemitério e enterrá-lo, debaixo de muitas orações em socorro das almas sofredoras.
E foi uma senhora de um grupo desses que saía a encomendar almas que contou que numa noite de lua clara algo diferente aconteceu. Toda aquela gente viu passar por entre eles um enorme porco que conduzia impassível uma ninhada de pintinhos. “Só de lembrar meu corpo até arrepia. Ninguém falou nada, ajoelhamos ali mesmo e rezamos pra afastar o coisa ruim”.