A PRESENÇA ANIMAL NA LITERATURA

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@toniramosgonçalves*

As enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul causaram comoção em todo o Brasil, não apenas pela tragédia humana, mas também pelos salvamentos de animais. Um momento marcante foi o de um cavalo caramelo resgatado no telhado de uma casa submersa em Canoas, após quatro dias isolado. Além dele, a mobilização para salvar cães, gatos e outras espécies demonstra uma crescente conscientização sobre a defesa dos direitos dos animais. Vale ressaltar que a vida, a liberdade e a integridade física são consideradas direitos fundamentais dos bichos, tal como para os seres humanos. Defensores dos direitos dos animais sustentam que, assim como nós, eles possuem equivalência em sua capacidade de sentir dor e sofrimento emocional.

Os bichos de estimação são uma constante em minha vida, sempre estiveram presentes. Eles também são figuras recorrentes na literatura, assumindo papéis de personagens em diversas obras. Maria Esther Maciel, professora na Universidade Federal de Minas Gerais, especialista em Teoria da Literatura e Literatura Comparada, explorou essa representação animal na literatura nos últimos duzentos anos em seu estudo “Literatura e Animalidade” (2016). Em uma entrevista ao jornal UOL, em 03/07/2016, ela discutiu sobre obras literárias do século 20 e 21 onde animais são protagonistas. A análise de textos de autores como Franz Kafka, Jorge Luis Borges, J. M. Coetzee, Clarice Lispector e Guimarães Rosa contribuíram para seu entendimento sobre a presença e significado dos animais na arte da escrita.

Para Maria Esther, a representação dos animais na literatura é importante para impulsionar o debate sobre ética animal, dada a capacidade da arte de sensibilizar. Ela considera Rosa como um dos principais escritores que abordam a temática animal sem adotar um tom militante, mas oferecendo uma representação que muito ensina sobre os animais. Maria Esther critica a infantilização dos animais, considerando-a uma forma de desrespeito à sua natureza, ignorando suas características e habilidades únicas.

Antonio de Paula Apoli, autor do livro “Dos Sinos: O Soar do Perdão” (2020), nasceu em Itaguara-MG, local onde Guimarães Rosa viveu de 1930 a 1932. Atualmente, ele reside em Goiânia e é um admirador das obras de Rosa. Para este artigo, Apoli reescreveu exclusivamente um trecho do conto “O Burrinho Pedrês”, presente no livro “Sagarana” (1946): 

O Burrinho Pedrês, vindo lá, do Passa Tempo, terras do berço da fazenda Campo Grande de Bolívar de Andrade. O estábulo de ouro do Manga Larga Machador. Contudo, o Sete Ouro era um burrico sem raça apurada, um verdadeiro tatú com cobra, nem beirava a tropa alinhada da fazenda Campo Grande. Subiu a serra de Piracema, atravessou os trieiros de piçarras do Quilombo e foi beber água na Sarapalha do Campo dos Gentios nas terras de Manuelzão, de certo.  Sete Ouro era um burrinho aciganado, havia passado em muitas mãos, hora trocado por outra mercadoria, hora catirado por uma bagatela. Ninguém dava nada por ele, já estava com o lombo calejado, os cascos estrupiados pelas andanças no sertão, mas era obediente, sossegado, com o tropel tropego, isso é verdade, mas pronto para qualquer lida. Até o Major Saulo pediu para arrear o Pedrês botar o coxonilho para seguir quatro léguas adiante. Sete Ouro teve muitos nomes, como donos também. O destemido burrinho era o figurado mais respeitado. Há muito tempo na lida dos campos sem fim, a resistência e o calejo carecia de respeito, certa jornada, ainda atravessou o rio desembestado meios as pedras levando o caboclo para fugir da morte morrida. Sete Ouro foi o único a chegar do outro lado da margem do rio. Os outros sete não escaparam da traiçoeira correnteza do rio. O Burrinho Pedrês era o vivente mais estimado das comitivas, era o valente tombado pela experiência das lidas dos Campos Gerais.

Na literatura brasileira, a cachorra Baleia do romance “Vidas Secas” (1938) de Graciliano Ramos é, sem dúvida, um dos personagens animais mais emblemáticos. Paulo Siuves, escritor, poeta e presidente da Academia Mineira de Belas Artes, considera Baleia uma personagem complexa e essencial dentro da trama, ocupando um papel central na família de retirantes e, consequentemente, na narrativa do livro. Siuves acredita que o autor dotou Baleia de suas próprias formas de sentir, agir, sonhar e até pensar, humanizando-a e animalizando os outros personagens. Para ele, os limites entre humanidade e animalidade se misturam, independentemente de sua espécie.

Os esforços de resgate de animais, nas enchentes do Rio Grande do Sul, juntamente com a reflexão sobre a animalidade nas obras literárias, mostram um crescimento na consciência ética em relação aos animais. Este movimento não apenas amplia nossa compreensão sobre a importância de tratar todos os seres vivos com respeito e dignidade, mas também reflete um amadurecimento cultural que reconhece os bichos como seres capazes de experienciar dor e emoções. Portanto, a convergência de ações de resgate e debates literários ilustra uma mudança significativa em nossa sociedade, caminhando para compaixão por todas as formas de vida.

Como disse Guimarães Rosa: “Amar os animais é um aprendizado de humanidade.”

* Toni Ramos Gonçalves (Não é o Global)

Professor de História, Escritor, Editor, ex-presidente e um dos fundadores da Academia Itaunense de Letras – AILE.