A quem interessa uma sociedade de inclusão e diversidade?

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Este é um tempo em que explicar a mesma coisa várias vezes tem se tornado uma demanda, talvez um ofício. Há uma confusão (intencional, por vezes) entre o que é um direito e o que é uma ideologia, entre princípios básicos e partidarismos. E os termos “inclusão” e “diversidade” estão neste limbo conceitual, reféns de discursos e narrativas com pouca ou nenhuma neutralidade.

Em primeiro lugar, é preciso estabelecer um parâmetro para a discussão sobre o tema: uma sociedade que não seja diversa é impossível, sobretudo quando se leva em conta um país de dimensão continental como o Brasil. Todos sabemos: miscigenação e pluralidade religiosa são constituintes do nosso povo, não uma novidade ou um acaso. Se adentrarmos na discussão sobre as particularidades das pessoas, aí é que o assunto não se esgota. Entretanto, ainda não existe um consenso sobre tornar a diversidade um direito e fazê-lo exercido.

Apenas a partir da década de 90, de modo especial, é que a ideia de Educação Inclusiva começa a ser pensada, quando ocorreu a Conferência Mundial de Educação Especial, com a intenção de representar na sociedade, de forma mais participativa e equânime, pessoas com deficiência (PcD[1]), principalmente na área educacional. Embora o Brasil tenha uma longa história de discriminação e exclusão de alguns grupos classificados como “minorias”, apenas em 2010 houve a criação do Estatuto de Igualdade Racial (Lei 12.288), e somente em 2011 foi lançada a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (portaria nº 2.836). É muito recente que temas como casamento de pessoas LGBTQIA+, empoderamento das mulheres, racismo, dentre outros, tenham adentrado em escolas, casas e novelas. E o fato de ser recente já diz, por si só, de um “sintoma social”.

E é nesse ponto que se faz mister perguntar: a quem interessa uma sociedade de inclusão e diversidade? Quem se dispõe a olhar para o diverso e tentar incluí-lo? Quem é que consegue ligar a TV e se deparar com configurações familiares, escolhas e modos de viver diferentes dos seus sem perder as estribeiras e falar em “ditadura gay”? Quem consegue fazer uma “revisão” sobre décadas de piadas, comentários e práticas de exclusão a respeito do corpo, da cor e da sexualidade das pessoas? Arrisco, como psicólogo, a responder: quem for capaz de olhar além do próprio mundo, quem for capaz de perceber que há outras “gramáticas” que regem a vida, que há outros “registros” por aí, e não apenas aquele que nos formou no nosso núcleo familiar, simbólico e social.

Como clínico, entendo e lido com pessoas que possuem dificuldades para fazer essa travessia. Ela, de fato, não é simples para muitos, pois há algo de estrutural no Brasil que quase nos impede: fundamentalismo religioso, machismo, racismo, servidão, mas “atravessar” pode ser também uma escolha. Portanto, uma sociedade diversa e inclusiva não interessa a todos e todas, ainda, justamente porque o exercício de reconhecimento do outro, sempre com alguma diferença em relação a nós, demanda uma mudança de posição: é preciso “desafixar-se do espelho”, o que se torna inclusive uma cura possível para as patologias do narcisismo.

Sim, o narcisismo fez e faz parte do nosso desenvolvimento. Ele é constituinte, mas é preciso ir adiante! É preciso, dia após dia, transitar, passar do “autoerotismo” e eleger o outro como um “objeto de amor” possível, nos dizeres freudianos. Inflar menos o “Eu”, fazer menos uso das defesas psíquicas que protegem do contato com o diferente, ou seja, furar a própria bolha, sair da multidão dos indivíduos solitários que só veem a si mesmos.

Apenas suportando o “embaraço”, causado pelo encontro com quem é diferente, é que se torna possível a superação da cultura de indiferença e de ódio. Assim, o desafio é também interno. Fala-se tanto em saída da “zona de conforto”! Pois é: racismo, LGBTfobia e demais preconceitos são zonas que já estiveram por demais “confortáveis” para alguns, não?! Vamos mudar?

Nilmar Silva é Psicólogo (CRP 04/47630) e Filósofo, Especializando em Sexualidade, Gênero e Direitos Humanos; Especialista em Docência do Ensino Superior e MBA em Gestão de Pessoas. Atua clinicamente com foco na Saúde Mental de pessoas LGBTQIA+.

@psicologo_nilmar

psicologonilmar@gmail.com


[1] Forma correta de se denominar aqueles que possuem qualquer tipo de deficiência, segundo a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito das Pessoas com Deficiência.

1 COMENTÁRIO

  1. Que artigo maravilhoso! Muita coerência entre as ideias e as palavras…É preciso chegar aí maior número possível de leitores…a concuentizacao ainda é o caminho.

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