Amor Proibido

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César Gomes

Pitangui/MG, década de 1930

Alice era uma moça de 20 anos, não muito diferente das outras jovens das bandas de Pitangui/MG nos anos da década de 1930. Assim como suas primas, tias, mãe e avó, não frequentou a escola, e seus dias eram preenchidos pelas obrigações domésticas e pela presença nos eventos religiosos da comunidade.

A jovem desse relato era filha de Antônio Amado, fazendeiro influente, famoso por roubo de terras e de gado, e Maria Flores, esposa fiel e devota fervorosa de Nossa Senhora Aparecida. Por influência materna, Alice se formou como uma tradicional beata. O mundo que a moça conhecia era limitado às terras de seu pai, especificamente a cozinha do casarão da fazenda e a igreja do povoado. Não tinha acesso à literatura, música, política e se via mergulhada em questões envolvendo a sexualidade, que lhe despertava tanta curiosidade, mas não tinha liberdade para conversar com ninguém sobre isso.

Em uma manhã de primavera, o ribeirão sussurrava ao fundo do casarão de Antônio Amado, refletindo a beleza da paisagem. Alice, ajoelhada na margem, observava seu reflexo na água fria que escorria por entre seus dedos enquanto enchia seu pote. A jovem ouviu o ruído suave de um cavalo. Levantou o olhar e viu do outro lado do ribeirão um homem de feições firmes e braços fortes, que, do alto de sua montaria, a observava com um sorriso. O coração dela disparou. Com o pouco vocabulário que possuía, não conseguia descrever em palavras o desejo que sentia. Nunca antes a moça havia sentido algo assim, e tinha dúvidas se seria uma das obras de Deus ou um pecado carnal. Os jovens trocaram olhares e saudações, mas ambos desejavam mais.

Alice passou a ir ao ribeirão todos os dias, no mesmo horário, com o intuito de encontrar o cavaleiro, e seu desejo era sempre concretizado. Depois de algumas semanas, o jovem cruzou o ribeirão, dando mais um passo na construção de um amor de primavera. Os jovens conversavam muito, e Alice começou a ouvir do rapaz sobre as possibilidades de uma vida para além das paredes do casarão de Antônio Amado. Às margens daquele curso d’água que uniu os dois, Alice deu seu primeiro beijo. Aquela nova sensação fez seu coração disparar, e seu corpo parecia leve; o contato de pele com pele a levava às alturas.

Inúmeros encontros aconteceram as margens do ribeirão, e nas águas eram refletidos os beijos que davam à vida de Alice um tom colorido e inspiravam a sinfonia empolgante que embalava sua existência. O cavaleiro queria dar a Alice sua primeira experiência como mulher, mas a religiosidade enraizada da moça permitia o ato somente após o casamento. Alice sentia o peso dos ensinamentos de sua mãe, que lhe incutira a pureza como virtude essencial. Cada toque do cavaleiro a fazia querer esquecer essa exigência, mas o temor de pecar e desagradar a Nossa Senhora era um nó em sua alma. Como poderia ela desejar algo que tanto lhe foi ensinado a evitar? Decidiram, então, dar um passo adiante na relação: o jovem iria ao encontro de Antônio Amado para pedir a mão de sua filha em casamento.

No casarão da fazenda, Antônio Amado recebeu o jovem com espanto e o ouviu com desprezo, até interrompê-lo, se levantando de sua cadeira, como rosto vermelho de raiva gritou:

 — Com preto minha filha não casa!

Sua voz ecoou pelas paredes do casarão. Alice sentiu o chão tremer sob seus pés. Uma dor aguda cortou seu peito, como se todas as palavras que queria dizer se emaranhassem em sua garganta. Ela olhou para o cavaleiro, cujos olhos refletiam não apenas dor, mas uma dignidade que não era suficiente para desafiar o desprezo. Sem mais nenhuma palavra, o rapaz foi expulso da fazenda, e Alice deixada sozinha com o peso do amor que jamais poderia ter.

Antônio Amado ordenou o fim do relacionamento de sua filha. Alice, como uma filha obediente, acatou as ordens de seu pai. Segurou o choro o máximo que pôde, até mesmo durante a surra que levou naquele dia, mas a angústia era maior, e as lágrimas tinham um peso que seus olhos não conseguiam suportar. Chorou escondida por muito tempo.

O que me foi relatado após o fim ríspido dessa paixão é que Antônio Amado convenceu toda a burguesia da cidade a dificultar a vida do jovem cavaleiro. Em decorrência da escassez de oportunidades de moradia e emprego, o rapaz acabou se mudando para Pará de Minas, e nada mais se soube sobre sua história. Alice se tornou uma sombra da jovem que um dia sonhara às margens do ribeirão. O amor negado a petrificou, e os dias passaram a ser ecos silenciosos das lembranças de um futuro que nunca existiria. Dedicar-se à igreja e aos afazeres da casa não era escolha; era um lamento em silêncio, uma oração que ela murmurava, dia após dia, para enterrar o passado e anestesiar a dor de nunca ter sido verdadeiramente livre.

João Marques era um homem negro e foi o primeiro e único amor de Alice. Viveram em um tempo em que a legitimação da diversidade era extremamente difícil. Não encontraram em si a subversão necessária para a sustentação do relacionamento.

Seja pela renúncia de nossos desejos ou pelas consequências de nossas escolhas, todos sofreremos. Construir e defender nossa individualidade é uma árdua tarefa.

E você, ao ler essa história, em primeiro momento, imaginou João Marques como um homem negro? Se você o imaginou como um homem branco, o que isso tem a dizer?

Cesar Gomes,  é psicólogo, mantém interesse por literatura, teatro e fotografia. Membro titular da Academia itatiaiuçuense de Letras Ciências e Arte – AILCA