AQUELA RUA AO LADO DA IGREJA

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@toniramosgoncalves

Quase sempre, é preciso muita paciência e atenção para encontrar um tema para escrever uma crônica. É necessário desenvolver a habilidade de observar não apenas o contexto dos eventos descritos em reportagens, artigos e textos extensos. Uma análise cuidadosa de jornais e revistas antigas (eu tenho muitas) pode desvendar pormenores e sutilezas que, se explorados adequadamente, contribuem para reconstruir toda uma época.

Foi assim que me deparei com uma carta enviada à redação da “FOLHA DO OESTE”, datada de 15 de novembro de 1952. Nesse documento, um leitor expressa corajosamente suas preocupações, levantando a voz em prol da justiça e da humanidade, e solicitando alterações na maneira como as mulheres da zona boêmia de Itaúna eram tratadas, sem nenhuma dignidade.

Entre os questionamentos do leitor, identificado como J.P.C, figura o tratamento dispensado às mulheres que residiam em precárias moradias, a falta de liberdade e a ausência de condições mínimas de vida. O denunciante ao demandar ao Sr. Prefeito de Itaúna a criação de uma vila para essas mulheres, destacou a importância de oferecer-lhes não apenas um abrigo, mas um espaço onde a liberdade e o conforto pudessem florescer.

Mesmo após a denúncia, a zona boêmia de Itaúna permaneceu concentrada por muitas décadas na Rua Gonçalves da Guia, a mesma do lado esquerdo da Igreja do Rosário. Os bares e precárias residências ficavam no trecho entre a Praça do Capeta e o alto do Rosário. Hoje, não existe mais boemia, e os casebres foram substituídos por prédios modernos, abandonando os vestígios da vida noturna que fizeram parte da história da cidade. Um morador remanescente de décadas passadas, que pediu para não ser identificado, confidenciou-me que prefere os tempos de boemia daquela época. Os atuais moradores, quando não o olham enviesadamente, limitam-se a um cumprimento formal. ‘Tenho saudade da humildade dos antigos moradores, da música romântica e até brega que vinha dos bordéis. Era o que nos fazia suspirar’, emociona-se ao recordar.

É bom ressaltar que a prostituição não é um crime, desde que não envolva menores de idade. Devido à condição de invisibilidade social da maioria dos personagens, que viveram sem deixar registros escritos (muitos sendo analfabetos ou semialfabetizados), os documentos existentes geralmente os retratam de maneira negativa e preconceituosa. Isso inclui jornais da época, inquéritos policiais e processos judiciais.

O apagamento histórico dessas pessoas, que viveram à margem da sociedade por serem vistas como um incômodo, impossibilita a reconstituição histórica e um relato fiel das profissionais do sexo. Elas não recebem o mesmo respaldo destinado a empresários, esportistas e outros tipos de indivíduos considerados mais dignos de documentação. O que foi omitido nos registros formais sobre as mulheres que ali residiram perdura apenas na memória daqueles que um dia frequentaram o local.

O jornalista Sílvio Bernardes, assim como eu, teve sua infância nas ruas adjacentes e a zona boêmia fazia parte do nosso trajeto para a escola. Em uma troca de mensagens, ele reforçou que as mulheres da zona boêmia eram tratadas sem nenhuma dignidade. Elas só não eram ainda mais invisíveis devido aos homens sedentos por sexo fácil e à polícia, que também demonstrava sede em descarregar sua ira e truculência.

Um antigo frequentador da Rua Gonçalves da Guia, hoje residindo noutra cidade, relatou que nas décadas de 70 e 80, os sábados eram extremamente movimentados na rua conhecida como Coréia (nome pelo qual a maioria se referia a ela). Vinha gente de todo lugar para gastar praticamente todo o salário, devido à presença de muitas mulheres bonitas e atraentes. As brigas eram frequentes, especialmente quando a turma do “Cerrado” encontrava os da “Laje”, resultando numa briga generalizada.

Em determinados períodos, a área tornava-se bastante violenta, chegando a registrar casos de assassinato e assaltos. O entrevistado também confessou que dois amigos se casaram com mulheres da zona, enfrentando grande discriminação da sociedade itaunense na época. Apesar das dificuldades e do estigma social, levavam uma vida aparentemente feliz. Ele mencionou que, nos dias atuais, embora ainda exista alguma discriminação, não é tão intensa como era antigamente. “Elas levavam uma vida de cachorro e sofriam muito com isso”, completou com seu semblante triste e envelhecido.

Atualmente, a prática da prostituição em Itaúna não se limita a uma única rua, estendendo-se por boates e bares distribuídos por toda a cidade. Recentemente, a Praça da Estação, um espaço público, tornou-se um local frequentado por trabalhadoras do sexo. O consumo de drogas frequentemente está associado a essa atividade, o que aumenta o risco de violência e insegurança para a população. Os moradores nas proximidades da praça expressaram seu descontentamento por meio de protestos, resultando gradualmente na migração das mulheres para outros pontos.

Por ser uma pesquisa recente, ainda não identifiquei na literatura itaunense muitos relatos sobre os eventos ocorridos nesta rua do meretrício. No meu conto “Cantinho do Céu” (2019), disponível para leitura no meu blog, presto uma breve homenagem ao bar que levava esse nome e ficava ao lado da igreja do Rosário, onde hoje é um lote vago. No livro “Lembranças” (2022), de autoria do ex-Vice-Consul Edson Diniz, há um breve relato de jovens que se aventuravam nas noitadas na zona boêmia.

A prostituição, além de transcender estigmas, constitui um convite à reflexão sobre a complexidade da condição humana. Esta realidade multifacetada lança luz sobre diversas camadas sociais, políticas e emocionais, destacando a importância de atentar para as nuances da sociedade, preservar a memória coletiva e refletir constantemente sobre a justiça e dignidade para todos, independentemente de sua condição social. A prostituição, assim, não é apenas um fenômeno isolado, mas um espelho que reflete a necessidade perene de compreender e aprimorar nossa visão de vida.

* Toni Ramos Gonçalves

Escritor, editor, ex-presidente e um dos fundadores da Academia Itaunense de Letras – AILE. Graduando em História e Jornalismo.