Vendedores de velas
Sílvio Bernardes
– “Óia a véia, óia a véia!”. Era assim que a meninada apregoava os mais aguardados produtos destinados às procissões dos santos, especialmente a do Senhor Morto na sexta-feira da Paixão. Na verdade, os moleques deveriam anunciar vela e não velha – ou, pior, “véia”. Vendíamos velas para as procissões e caçoávamos da situação, embora os dias pediam mais respeito e menos molecagem. Mas era assim mesmo. Na praça da matriz e em ruas da proximidade do centro os moleques de calças curtas – e alguns marmanjos também – vendiam velas amarelas, finas e compridas, metidas em sacolas de pano, chamadas de capangas. Não sei quem eram os fornecedores das velas, muito menos os fabricantes. Se não me engano, os irmãos Debique (Oscar, Jair e Gentil) coordenaram o negócio de velas por um tempo – e eram os que arregimentavam aquela corriola de vendedores. Sei também que eram velas feitas de cera de abelha e parafina. Era da casa da Dona Amélia, matriarca dos Debique, na “rua do Venero”, que os pequenos vendedores saíam para o trabalho.
Eu não fui muito frequente nesse negócio, mas meus irmãos compareciam, todos os anos, àquela função (mais ou menos benta). Lembro-me que a gente morria de medo das velas se quebrarem. Aí era prejuízo, o vendedor imprevidente teria que pagar pelo dano. A porcentagem do vendedor ia p’ras cucuias. Nenhum freguês queria uma vela partida. Mas, podia-se vender essas por um preço bem pequenininho, uns 50% ou mais para menos.
As procissões na Matriz de Sant’Ana eram um evento dos mais importantes da minha cidade de outrora. A praça principal – por todos chamada de praça da matriz – ficava apinhada de gente de todo lugar. A atmosfera era de Semana Santa: os sermões do padre Nobre, as homilias do padre Waldemar e do padre José; a voz empostada do locutor na transmissão da Rádio Clube; o canto da Verônica, triste que doía; a marcha cadenciada da banda de música; o sino da matriz num bimbalhar dorido; o cheiro de incenso dos turíbulos dos coroinhas e acólitos da igreja mais o das velas queimando. As gentes andavam por ali silenciosas e contritas, debulhando o terço e murmurando palavras confusas. Nas procissões as velas serviam, entre outras coisas, para derreter um líquido quente e doído na mão da gente (e fazer a gente falar coisas indecentes) e para queimar a cabeleira das mocinhas distraídas – à frente de um filho-de-deus mais distraído ainda. Depois da Semana Santa as sobras das velas eram guardadas para serem acesas em noites tenebrosas de tempestades. Aquela chama iluminava as orações aos santos que nos livravam do fim do mundo iminente: Santa Bárbara e São Gerônimo. Aliás, a luzinha das velas não era páreo para os clarões medonhos dos relâmpagos e, muita vez, se apagava com medo dos estrondos dos trovões. “Minha nossinhora nos acuda. São Geromo, Santa Barba!”. Nesse tempo também a mãe queimava plantas bentas da procissão de Ramos e a gente se sentia protegido dos raios e dos ventos enfurecidos. Havia também uma cantiga: “Santa Bárbara levantou, se vestiu e se calçou…”.
De primeiro, como diz o outro, era assim, vela benta, ramo bento, água benta. A meninada é que não era muito benta. “Óia a véia, óia a véia”, tem cabimento um trem desse?