CENTENÁRIO FERNANDO SABINO (1923-2023)

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Em 1946, enquanto residia em Nova Iorque, Fernando Sabino iniciou o rascunho de seu livro “O Grande Mentecapto”. No entanto, somente em 1979, após dezessete dias de intensas revisões, ele finalmente o publicou. O livro alcançou um sucesso notável, culminando com a conquista do Prêmio Jabuti de Melhor Romance em 1980.

Em “O Grande Mentecapto”, Fernando Sabino aborda a temática da loucura como uma reação às circunstâncias sociais e à sociedade opressora enfrentadas pelo personagem Geraldo Viramundo. Com um toque de humor, o autor explora a relatividade da sanidade em um cenário social absurdo. A trama, ao desafiar as fronteiras entre sanidade e loucura, convida os leitores a refletirem sobre a própria natureza da realidade e a complexidade das experiências individuais.

A obra destaca de forma impactante a arbitrariedade das normas sociais em um mundo marcado pelo caos e pela falta de sentido. Sabino, por meio de sua narrativa envolvente, oferece uma crítica perspicaz às convenções sociais, convidando o leitor a questionar as regras que regem a sociedade e a explorar os limites da sanidade em meio a um contexto caótico.

AS AGRURAS DE UM DOIDO VARRIDO

(Texto adaptado ao universo de Fernando Sabino)
@toniramosgonçalves*

O padre Jão saiu da sacristia no exato momento em que as badaladas do sino da igreja ecoaram, anunciando as duas horas da tarde. Ajeitou o colarinho de sua camisa e conferiu o relógio de pulso. Com passos apressados, ele adentrou pelo corredor central da igreja, completamente alheio ao fato de que, naquele mesmo instante, um homem preto, alto e magro, com quase dois metros de altura, havia entrado rapidamente na igreja e estava se aproximando dele.

O homem, com pernas desproporcionais em relação ao tronco, olhos afundados em órbitas arregaladas e lábios grossos e caídos, caminhava com passos largos, ao mesmo tempo em que se benzia com o sinal da cruz. O padre Jão, ao perceber a figura estranha, parou abruptamente, seu rosto empalidecendo de surpresa. Ele considerou a possibilidade de retornar à sacristia, mas antes que pudesse fazê-lo, ouviu o chamado:

– Ô padre, peraí um minutinho.

O sacerdote revirou os olhos, pois já sabia da reputação do homem. Um doido varrido do tipo que fala sozinho e rasga dinheiro, que havia aparecido na cidade durante a Semana Santa daquele ano. O homem, que vivia nas ruas, proclamava aos quatro ventos que havia fugido de um hospício em Barbacena com a ajuda de um indivíduo chamado Geraldo Viramundo, a quem ele considerava um verdadeiro herói dos tempos da cavalaria.

– O que você deseja aqui, meu filho? – perguntou o sacerdote, virando-se na direção dele.

– Ai, Padre, me trate com respeito – replicou o preto, em tom agastado, franzindo as sobrancelhas, enquanto o suor escorria pela testa devido ao calor daquele dia. – Se liga, cê acha que eu tenho cara de filho de padre? Filho de padre é mula sem cabeça. Eu sou filho legítimo do Orozinho Silva dos Santos e da Dª Guilhermina Soares dos Santos. Você manja que eu sei ler, escrever e fazer as contas, né? Sou órfão de pai e mãe, tô largado nesse mundão e, do jeito que as coisas estão, tô me sentindo como se tivesse me afundando na merda. Na merda mesmo, padre. Na merda da vida! É por isso que eu preciso, tipo, muito urgente, me confessar, padre.

O padre, agoniado, percebendo que a igreja estava vazia e sem alternativa para o caso de uma emergência, conduziu-o até o confessionário.

O rosto do preto cresceu à medida que se aproximava da pequena janela, destacando-se especialmente o nariz e a boca, com lábios grossos, molhados pela salivação de sua irritação.

– Padre – começou ele após um breve silêncio – Tô com um desejo louco de fazer um estrago. Não tô brincando, não. Eu já segurei a onda o quanto deu. Agora não tô a fim de sofrer desaforo. Tô pronto pra fazer uma bagunça. Você sabe que me enfiaram um apelido, né? É, padre. Meu nome é Jão, igual o seu. Você não vai acreditar. Agora me chamam de Tibeiço. Pois é, é isso mesmo que tô te dizendo: Tibeiço!

O rosto do preto recuou, e padre Jão viu surgir na sua mão, uma lâmina reluzente e afiada de aproximadamente um palmo e meio avançar pelo vão da janelinha.

– Você não pode fazer isso – contestou o Vigário, recuando ainda mais para dentro do confessionário, temendo a faca.

– Não pode, padre, por quê? – replicou o preto, injuriado. – Parece que você não faz ideia de quem eu sou. Eu já falei que, se for preciso, eu encaro qualquer parada. Se alguém vier com essa fita de Tibeiço, anota bem o que eu tô te dizendo, esse cara vai direto pras profundezas do Inferno, sem nem tempo pra confessar.

Padre Jão suplicou, com aflição:

– Fale baixo, por favor, fale baixo.

– Vou gritar, padre, o mais alto que eu puder. Não me chamam de Tibeiço? Então que encarem, seus manés.

Cada vez mais alarmado, padre Jão olhava discretamente para fora do confessionário, procurando alguém que pudesse ajudar. Estava claro que a qualquer momento o homem poderia fazer algo extremo. Ele segurou firmemente seu terço, mentalmente implorando a proteção de todos os santos do céu, e então disse com uma voz suave:

– Por favor, acalme-se. Não se exalte. Tente mudar seus pensamentos. Se o senhor tirar a vida de alguém, acabará na prisão aqui na Terra e no Inferno após a morte.

– E o Inferno é pior do que isso, padre?

– Muito pior – confirmou o vigário.

– Olha, padre, eu não concordo, sério. Pior que isso não tem, cara. Sabe onde eu durmo? Na rua, meu. Eu boto minha cabeça numa pedra e meu corpo no chão pra dormir à noite. Quando chove, eu tento achar um lugar embaixo de uma ponte. No frio, eu fico tremendo. Eu só como quando algum anjo aparece e me dá uma comida. Essa roupa é a única que eu tenho, eu sei que tô naquele estado, mas é o que tem. Uma vez até um cachorro mijou em cima de mim, acredita nisso? Eu já tive uma casa, uma família, uma cama, igual você, padre. Mas agora? Agora eu não tenho nada. Tô afundado na miséria até o pescoço. É justo? Lógico que não é. E o Inferno, pior que isso? Não tô comprando essa ideia, padre. Sei bem o que tô falando. Meta o seu Inferno, sabe onde, né?

Ele limpou os lábios com as costas da mão, cuspiu com uma expressão de repulsa, e abaixando ainda mais a cabeça, continuou:

– Eu nunca fiquei choramingando pela minha vida, sabe? Aceitei tudo de boa, com humildade. O que me tirou do sério foi quando começaram com esse negócio de Tibeiço, sendo que meu nome é João. Tibeiço, que diabos, mano? Que todos eles vão se lascar… Enfim, você entendeu, né?

O doido se levantou num supetão:

– E vai você também, padre. Tô de saco cheio desse seu papo manso. Não me incomode mais. Seu frouxo!

Padre Jão, que suava frio, continuava imóvel e em oração, olhou para a imagem de Nossa Senhora no altar e viu o homem, em passos rápidos, alcançar a porta da igreja e desaparecer sob o forte sol daquela tarde.

* Toni Ramos Gonçalves

Escritor, editor, ex-presidente e um dos fundadores da Academia Itaunense de Letras. Graduando em História e Jornalismo.