CRENDEUSPAI: O CAPETINHA DA GARRAFA

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@toniramosgoncalves*

– Você ficou doido, menino? Ai de você se atrever a pular a cerca dele para pegar manga. Se aquela peste de homem ruim não te acertar com um tiro de sal ou de chumbinho, eu mesmo te corrijo com a vara de marmelo.

Foi assim que minha mãe ralhou comigo ao saber do meu plano para pegar as melhores mangas no lote do nosso vizinho, quase sempre, para matar a fome. Eu era um molecote de nove ou dez anos e, ali perto da chácara do Zé Rosa, no alto do Rosário, havia um quintal pertencente a um homem que metia medo em todo mundo. Era um sujeito de cara amarrada, um tipo ruim, que todos diziam que ele tinha feito um pacto com o diabo para enriquecer. Para aumentar a veracidade, aquela região já era famosa por seus casos de assombrações e outras manifestações inexplicáveis.

Naquela época, todo mundo comentava que “Seu Joca da Manuelina” (nome fictício), o meu vizinho, tinha um capetinha na garrafa com quem tinha feito o pacto. Isso, bem antes da primeira versão da novela “Renascer” em 1993, onde o personagem Tião Galinha ficou famoso em busca do tal diabinho. De acordo com a lenda, esse ser é o resultado de um acordo que, segundo dizem, pode ser feito com o diabo. Esse acerto envolve, na maioria das vezes, uma troca: a pessoa solicita riqueza e, em contrapartida, oferece sua alma ao capeta.

Apesar da ameaça de ser castigado por minha mãe, estava decidido a invadir o quintal com o andar de gatos para pegar as mangas que caíam aos montes e apodreciam no chão. Para minha sorte ouvi os gritos e choro de um menino vindo da rua de baixo, onde era a entrada do casarão. Corri para ver o que estava acontecendo e presenciei o “Seu Joca da Manuelina”, supostamente aliado ao “coisa ruim”, agredindo seu próprio filho. Ele o espancava com um pedaço de cabo de aço, deixando marcas profundas no corpo do garoto, que implorava por misericórdia entre soluços, pedindo que parasse, mas sem sucesso. Nem mesmo os olhares reprovadores da vizinhança o detiveram.

Aquela cena me perturbou profundamente. Ele deixou o filho caído no chão, completamente desamparado, e entrou em casa sem demonstrar a menor piedade. De repente, me vi pensando no que ele poderia fazer comigo caso me flagrasse pegando suas mangas. Fiquei ali, do outro lado da cerca, por um bom tempo, tentando encontrar a coragem que nunca chegou.

Os boatos me deixaram frequentemente pensativo sobre como seria ter um capetinha na garrafa. Sempre que passava pelo seu casarão, a mais luxuosa da rua, eu atravessava para o outro lado da calçada, temendo o que poderia acontecer, já que ali possivelmente era moradia do capeta. Comecei a acreditar que a riqueza daquele homem perverso pudesse ser proveniente de tal ligação. Assim, decidi que também queria ter um, já que era muito pobre e desejava enriquecer.

Na novela “Renascer”, de 1993, o personagem Tião Galinha busca obter um ovo especial, do tamanho de um ovo de codorna. Para isso, ele realiza sua procura durante primeira sexta-feira da Quaresma. Após encontrar o ovo, a pessoa deve ir até uma encruzilhada à meia-noite, levando o ovo sob o braço esquerdo. Depois da meia-noite, retorna para casa e vai deitar-se. Aproximadamente ao fim de 40 dias, o ovo choca, dando origem a um diabinho. O próximo passo é colocar imediatamente o diabinho dentro de uma garrafa e fechá-la cuidadosamente. Com o tempo, o diabinho proporciona riqueza ao seu dono, mas, ao final da vida deste, leva-o para o inferno.

Ao contrário do personagem da novela “Renascer”, que se passa em 1993, eu vivenciava os anos de 1980. A técnica para capturar um capetinha que eu conhecia envolvia um redemoinho, que, segundo os mais velhos, era provocado por um diabinho ou pelo Saci – para mim, qualquer um dos dois serviria, contanto que me tornasse rico. Portanto, peguei uma garrafa vazia, marquei uma cruz na rolha, apanhei a peneira de minha avó às escondidas e escolhi um dia ventoso para a minha tentativa.

Era um daqueles dias de agosto, de muito vento, e logo após a escola, posicionei-me sob a pitangueira para armar minha emboscada. A rua era uma ladeira desprovida de calçamento, o que facilitava a identificação de um redemoinho assim que se formasse e a poeira levantasse. E não é que, por volta das 15 horas, um súbito e forte pé de vento provocou um imenso redemoinho? Corri em seu encalço, sem saber como lançar a peneira corretamente, já sonhando com as riquezas que o capetinha me traria, uma vez capturado dentro da minha garrafa, me tirando daquela miséria de vez.

– Vem cá, seu capetinha! – ouvi uma voz exclamar, mas percebi que não era a minha.

Quando senti a primeira lambada bater em minhas pernas, olhei para trás e vi minha mãe, vara de marmelo em punho, correndo atrás de mim. Não tive tempo de lançar a peneira sobre o verdadeiro diabinho. Acelerei, superando o próprio redemoinho em velocidade, e fui me esconder no meio do mato, longe do alcance da sua ira.

Mais tarde, ao retornar para casa, depois de alguns catiripapos prometi a minha mãe de não tentar mais capturar o “coisa ruim”. Fiz a promessa, mas com os dedos cruzados, planejando tentar novamente em outros dias. A verdade é que o “danado” sempre se mostrou mais esperto do que eu.

Não podemos acreditar em tudo que se ouve por aí, mas a gente sabe que, quando o povo fala, alguma verdade tem. Anos depois, já adulto, fui surpreendido durante a tradicional festa do Rosário ao ver “Seu Joca da Manuelina”, que, apesar de sua extrema maldade em tempos passados, desempenhava o papel de rei na guarda de Congado. Esses são mistérios que provavelmente nunca serão esclarecidos.

A lenda do capetinha na garrafa, amplamente difundida pelas regiões Norte e Nordeste do país e alcançando o Sudeste, é considerada uma brincadeira por crianças e adolescentes. Alguns estudiosos atribuem a origem dessa lenda à tradição africana, que foi trazida ao Brasil durante o período da escravidão, em um contexto marcado pelo preconceito contra as religiões de matriz africana na nossa sociedade.

Diante das restrições impostas, que os impediam de se reunir e comunicar entre si, os escravizados criaram a brincadeira conhecida como “Famaliá” ou “Garrafa de Gude”, que teria sido uma forma de se comunicarem e se expressarem. A crença na presença de espíritos malignos em objetos inanimados é comum em diversas culturas populares ao redor do mundo. Assim, é plausível que essa tenha sido introduzida no Brasil pelos escravizados africanos, embora ainda não exista comprovação concreta.

Outro dia, passei em frente à casa de “Seu Joca da Manuelina”. Atualmente, ela está desocupada e à venda. Foi nesse momento que me lembrei de que, entre os meus pertences guardados, ainda possuo a garrafa vazia e a peneira. Quem sabe, se eu…

* Toni Ramos Gonçalves

Professor de História, Escritor, Editor, ex-presidente e um dos fundadores da Academia Itaunense de Letras – AILE. Graduando em Jornalismo.