@toniramosgoncalves*
– Ô, Jão! Manda uma cerveja bem gelada e três refrigerantes aí! – fez sinal para o garçom – Vou ter um papo reto com essa rapaziada aqui.
E aí, galera, olha só, eu tinha só nove anos quando comecei a me virar. Foi aí que caiu a ficha de que eu era pobre pra caramba. Decidi que tinha que dar um jeito de melhorar as coisas em casa, ajudar nas contas. Eu morava no morro do Rosário, sabe? Um lugar cheio de gente esquecida pela sociedade. A garotada por lá, quase toda, trabalhava de engraxate, ficava lá no bancão da Praça da Matriz de Sant’Anna. Aquele jornalista massa que veio aqui esses dias, o Sílvio Bernardes, aquele mesmo da cabeleira branca, podem acreditar, ele era um desses caras. Era um bando de moleques meio tristes, revoltados, tipo eu. Além de dar brilho nos sapatos, eles aprontavam umas e outras pelas ruas, e fazia a molecada mais fraca tremer nas bases. Eram uns diabinhos, sempre no meio de rolo. Eu era mais do tipo que se borrava todo, especialmente depois de levar uns coros deles na rua. Minha mãe, sempre de olho, me intimou que eu ficasse longe dessa turma. Hoje eu vejo que ela tinha razão, porque a maioria desses caras ou tá preso ou se foi dessa para outra vida. Essa história nunca acaba bem, né?
Então, a primeira oportunidade que pintou de trabalhar foi vendendo picolé. Só que, mano, eu era péssimo nessa de vender. E acho que até hoje não levo jeito, sou mais do tipo gente boa, não nasci pra ficar rico de forma honesta, saca? Olha só, o que eu ganhava de comissão vendendo os picolés era uma mixaria, nem dava pra pagar os que eu mesmo comia. Eu vendia, mas consumia mais do que qualquer cliente. O lance é que eu tava sempre morrendo de fome, um verdadeiro lobo. Mas né, fazer o quê? Eu era só um moleque, cheio das vontades, e qual é a criança que não curte um picolé?
Depois, eu devia ter uns dez anos, parti pra catar sucata, mexendo em lixo e lotes vagos. Mas, pô, era ralar pra caramba e ganhar quase nada. Nunca enchia o saco de coisa valiosa. Teve uma vez que eu tive a ideia de encher umas latonas de óleo de nove litros com pedra, pra ficarem mais pesadas. Arrastei oito sacos dessas latas pedradas por uns quinhentos metros até a casa de um cara que comprava. Óbvio que ele percebeu a artimanha. Quando terminei de descarregar o último saco, o comprador começou a abrir as latas e a tirar as pedras, e era pedra pra caramba. Todo aquele trampo, atoa. Fiquei morrendo de vergonha. Mas o sujeito nem esquentou, viu. No fim das contas, pesou as latas, me pagou uma merreca, mas disse que ia ficar com as pedras porque precisava pra fazer uma base pro barraco dele e ainda me deu uma grana extra pelo “serviço”. Pediu pra da próxima vez trazer só latas mesmo. Nunca mais eu apareci por lá.
Aos doze anos, comecei nessa de limpar terreno. Como eu ainda estudava parte do dia, demorava dois dias, às vezes mais, pra terminar um serviço. O primeiro quintal que eu peguei era mais pedra do que mato. Minha mão ficou um caco, toda cheia de calo, e pra conseguir continuar no dia seguinte, tive que enrolar pano na mão de tão que doía. A dona da casa, uma senhora super gente boa, cujo nome nem lembro mais, não me deixava sair sem comer. Ela fazia uma carne sensacional, bem diferente do rango da minha mãe, uma delícia. Quando eu peguei os trinta cruzeiros pelo trampo, saí dando pulos de alegria pela rua. Finalmente, podia comprar a camisa do meu time de futebol que eu tanto queria, e ainda sobrou grana pra dar pra minha mãe. Fiquei nessa de capinar por um ano. Teve até uma vez que tive que dar fim em duas jararacas filhotes num terreno perto do rio. Foi tenso, maior risco.
Com catorze anos, dei a ideia pra minha mãe de trocar meu horário na escola pro noturno, assim dava pra trabalhar durante o dia. Consegui um trampo de ajudante de pedreiro com o senhor João Grilo, um coroa já de idade, parecia ter uma queda por minha mãe e um mestre no que fazia. Só que eu era só o osso, magrelo e meio que passando fome, mal dava conta de carregar uma lata de concreto pela metade. O velhinho ficava uma fera comigo, porque eu não aguentava o tranco. Aí, com o passar dos meses, comecei a ficar zoado de tanto cansaço e isso me atrapalhava na escola. Teve um dia que eu tava tão de saco cheio com o pedreiro, que me mandava carregar a lata sempre cheia, que fui pro almoço e decidi não voltar mais. Na parte da tarde, ele foi lá em casa, puto da vida, e minha mãe teve que explicar o porquê de eu ter largado. O lance era não deixar a escola de lado. Entende?
Minha infância foi barra pesada, mas ainda rolava aquele tempinho pra curtir, sabe? Jogar bola naquele campinho todo esburacado, devorar gibis e até pegar nos estudos. E ó, quando jovem, cê acredita que eu mandei bem no vestibular pra Engenharia Mecânica e passei? Mas, véi, nem rolou de entrar porque a grana era curta demais. A mensalidade era um absurdo de cara pra alguém duro como eu.
Comecei a ralar cedo mesmo, porque precisava, saca? Criançada tem que estar na escola, isso tá até na lei e tem que ser levado a sério. Naquele tempo, a parada era complicada. Tava acabando a ditadura, tinha uma desigualdade braba e se você falasse o que pensava, já era. A gente não era de família rica, então, oportunidade que é bom, nada. O que a gente queria mesmo era só melhorar de vida. Da minha parte, eu fiz o possível pra ficar longe de encrenca e de gente que não presta. Nunca faltou vontade de pegar no pesado, desde que o trabalho fosse limpo.
A gente tá em uma era diferente agora, né? Agora só não estuda quem não quer mesmo, tá ligado? Hoje, o trabalho infantil é crime, mas se o moleque depois de certa idade, lá pelos quinze ou dezesseis anos, não tá afim de estudar, bora achar algo pra ele fazer. Só que falar disso já é pedir treta, pode crer. Polêmica na certa. Mimimi. Mas olha, não vejo nada de ruim em ganhar uma grana depois dessa idade. Se a moçada não estuda nem trabalha, acaba se metendo em rolo com droga e partindo pro lado errado da vida. E aí que a coisa pega mesmo. Mente vazia, oficina do diabo. Mas ó, pensando por um lado positivo, se rolou bem comigo, por que não com a galera também, né? Principalmente pra vocês aí. Entenderam a parada?
– Ei, Jão! Solta mais uma rodada aí pra gente. Hoje é dia de festa, tô comemorando minha aposentadoria!
* Toni Ramos Gonçalves
Professor de História, Escritor, Editor, ex-presidente e um dos fundadores da Academia Itaunense de Letras – AILE. Graduando em Jornalismo.