Até o ator Morgan Freeman já fez uma espécie de mea culpa em relação à controversa frase a ele atribuída, na qual rejeitava a importância do Dia da Consciência Negra (20 de novembro), quando ainda afirmou, há mais de uma década, que a solução do racismo seria não falar mais sobre o tema. Bom, talvez nem seja preciso entende de psicanálise para saber que boa parte do que recalcamos ou damos um jeito de não enfrentar volta, um dia, com mais força.
Circula uma discussão que leva em conta um direito praticamente incontestável chamado “lugar de fala”. Ele, com toda razão, coloca em primeiro lugar de autoridade, de validade e de importância o discurso ou a narrativa de quem vive na pele (às vezes, literalmente), o racismo, a LGBTfobia, a xenofobia, o machismo, etc. Dessa forma, o texto aqui publicado quer tentar responder porque pessoas brancas precisam (e muito) escutar sobre a importância dessa data. Assim, o direcionamento aqui não é o de falar em nome das pessoas negras, mas, sim, sobre o que podemos nós, pessoas brancas, fazer para que essa ideia de “somos todos iguais” tenha concretude, palpabilidade, ao invés de se tornar uma escusa de herança colonialista, que nos coloca inertes, fantasiando um mundo de igualdades nada simétricas, na verdade.
Primeiro, as estatísticas: segundo dados do Atlas da Violência de 2019, “enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras teve crescimento de 4,5% entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios de mulheres negras cresceu 29,9%”. Ou seja, a violência no país não tem apenas gênero prioritário, mas também cor. É alarmante também o dado de que cinco pessoas negras morreram por dia, em ações policiais no Brasil, em 2021. É fato também que negros foram 78% das pessoas mortas por letalidade da polícia, em 2020, um recorde atingido naquele ano, mesmo em plena pandemia. Aqui, estamos falando de dados que apresentam realidades sobre violência física, o que já é, por si só, um hábito genocida. Mas, infelizmente, essa matemática ainda mostra menos do que é a realidade do problema, pois há algo “recalcado” no micro sistema e que tem cunho de violência simbólica.
Não bastasse essa caçada às pessoas negras, ainda lidamos com outros fenômenos que possivelmente são parte da gênese do racismo, visto que somos uma sociedade estruturalmente racista (qualquer livro de sociologia de qualidade comprova isso). Mas não precisamos entender tanto de pesquisas, de Atlas da Violência (embora sugiro conhecê-lo) ou sermos ligados a algum coletivo de militância para identificarmos como a exclusão das pessoas não brancas pode estar participando das nossas vidas. Basta darmos uma olhada à nossa volta, fazendo algumas perguntas, respondendo-as de forma sincera: quantos amigos (não colegas) negros nós temos? Das pessoas que recebemos em nossas casas, quantas são negras e quantas não são? No local onde trabalhamos, quantas pessoas negras estão exercendo papéis de liderança, de direção? Quantos professores universitários, médicos, engenheiros e também grandes empresários nós conhecemos ou frequentamos os seus estabelecimentos? Quanto daquilo que lemos, escutamos e consumimos é produzido por pessoas pretas?
Lembro de ter feito essa pergunta, numa noite, num bar de classe média, em Itaúna, para um amigo. Pedi a ele: olhe em volta! Conte quantas pessoas negras têm aqui. Não deu nem 10% de quem estava lá! Ele me disse, depois de um tempo, que nunca mais conseguiu deixar de fazer essa “análise” nos locais onde vai. Que se tornou praticamente automático e que fica, dia após dia, tristemente impressionado com o que constata.
Talvez esse seja um bom exercício a fazermos com frequência. Não para uma mera constatação que se dissolva após mais um gole de cerveja no bar, mas para que tenhamos, então, a tal consciência sobre os danos (e dados) que podemos estar causando, por falta dessa consciência, à população negra, levando-nos a escolhas mais inclusivas e justas. E antes de responder que “não consome ou não se relaciona com as pessoas por causa da cor, mas por causa do caráter ou da competência delas”, vale lembrar que há uma infinidade de gente branca com contestáveis “habilidades” profissionais, por exemplo, exercendo cargos altíssimos, com remunerações muito além do que merecem. Ou você vai bancar o “Morgan Freeman” e dizer que não conhece alguém assim?
Referências:
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA; FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (Org.). Atlas da violência 2019. Brasília; Rio de Janeiro; São Paulo: IPEA; FBSP, 2019.
Nilmar Silva é Psicólogo (CRP 04/47630) e Filósofo, Especializando em Sexualidade, Gênero e Direitos Humanos; Especialista em Docência do Ensino Superior e MBA em Gestão de Pessoas. Atua clinicamente com foco na Saúde Mental de pessoas LGBTQIA+.
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