“INCONSTITUCIONAL” Partidos e religiões de matriz africana questionam projeto que propõe leitura bíblica nas escolas

Se aprovada, Lei pode ser declarada inconstitucional, levando em consideração decisão do STF e do Tribunal de Justiça da Paraíba, relacionada ao mesmo tema

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A secretaria da Câmara recebeu recentemente o Projeto de Lei nº 45/2025, que propõe a incorporação da leitura da Bíblia Sagrada como ferramenta paradidática nas escolas públicas e privadas do município. O objetivo declarado pelos autores da proposta é promover o conhecimento cultural, histórico, geográfico e arqueológico presente no texto bíblico. De autoria dos vereadores Gustavo Barbosa, Giordane Alberto e Tidinho, a matéria assegura que “a participação dos alunos será facultativa, respeitando a liberdade de crença e consciência”.  

No entanto, apesar das intenções culturais e educacionais alegadas, o projeto levanta preocupações quanto a sua constitucionalidade. O Supremo Tribunal Federal já se posicionou em casos semelhantes, declarando inconstitucionais leis que imponham a presença obrigatória da Bíblia em escolas e bibliotecas públicas, por entender que tais medidas violam os princípios da laicidade do Estado e da liberdade religiosa. Em 2021, por unanimidade, o STF julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade, invalidando dispositivos de lei de Mato Grosso do Sul que obrigavam a manutenção de exemplares da Bíblia em instituições públicas de ensino e bibliotecas. 

A jurisprudência do STF destaca que o Estado deve manter neutralidade em relação às diversas crenças religiosas, não podendo privilegiar uma em detrimento de outras. A imposição de conteúdo religioso específico no ambiente escolar pode ser interpretada como uma forma de proselitismo, o que contraria a laicidade estatal garantida pela Constituição.  

Além disso, há precedentes em que tribunais estaduais declararam inconstitucionais leis municipais com propostas semelhantes. O Tribunal de Justiça da Paraíba, por exemplo, anulou uma lei de Campina Grande que propunha a leitura da Bíblia nas escolas públicas e privadas do município, por entender que a norma violava os princípios da laicidade e da liberdade religiosa.  

Na capital mineira

Em Belo Horizonte, a Câmara aprovou recentemente um Projeto de Lei idêntico, autorizando a leitura da Bíblia como material paradidático nas escolas. A proposta gerou debates intensos, com vereadores favoráveis argumentando sobre o valor cultural e histórico da Bíblia, enquanto opositores destacaram a inconstitucionalidade da medida e a necessidade de manter a neutralidade religiosa nas instituições de ensino. 

Diante desses precedentes, o Projeto de Itaúna poderá enfrentar desafios legais caso seja aprovado. Especialistas em direito constitucional alertam para a importância de respeitar os princípios da laicidade do Estado e da liberdade religiosa, evitando a imposição de conteúdos que possam privilegiar uma crença específica no ambiente escolar.  

Lideranças partidárias questionam proposição da “bancada religiosa” 

Após a publicação de um vídeo dos autores da proposta ao lado da Igreja Matriz de Sant’Ana, o tema ganhou ampla repercussão e passou a ser debatido intensamente, tanto nas redes sociais quanto entre presidentes e lideranças de partidos políticos da cidade. 

O servidor público Wandick Robson Pincer, cristão e ex-candidato a prefeito pelo Partido Verde (PV), representando a esquerda itaunense, questiona a proposição e levanta o debate sobre a inclusão, no projeto de lei, de outros livros religiosos como o Alcorão, a Torá e o Bhagavad Gita. 

 
“Só porque a religião oficial do Brasil é a Católica? Acredito que o projeto foge do verdadeiro aprendizado educacional. Nosso Legislativo sempre gosta de ir além. Há valores éticos em todas as religiões, crenças, dogmas, etc. Por que apenas a Bíblia?”, indaga. 

Geraldino de Souza Filho, conhecido como Mirinho, ex-vereador e presidente do Partido dos Trabalhadores em Itaúna, que foi companheiro de chapa de Wandick na última eleição para o Executivo, afirma que a proposta é inconstitucional e representa uma desonestidade ideológica. 

“Essa mesma proposta já foi aprovada em várias cidades do Brasil e posteriormente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Isso porque desrespeita a Constituição Federal, que assegura o direito à liberdade e à igualdade entre as pessoas; o direito à crença religiosa — ou à ausência dela —, bem como à convicção filosófica ou política. A Constituição garante que a liberdade religiosa é um direito fundamental de todos os brasileiros e proíbe o Poder Público — seja Governo Federal, Estadual ou Municipal — de promover qualquer política nas escolas que envolva uma religião específica”, pontua. 

Mirinho ressalta que, caso o projeto respeitasse o princípio da igualdade previsto na Constituição, deveria prever também a leitura da Bíblia nas suas diferentes versões (Católica, Protestante, Neopentecostal), além do Alcorão, do “Evangelho Segundo o Espiritismo”, dos fundamentos das religiões de matriz africana (como Congado, Reinado, Umbanda, Candomblé, Quimbanda, entre outras), bem como das religiões judaicas, budistas, indígenas, do Santo Daime, e das filosofias de vida não religiosas. 

“Assim, pelo princípio da igualdade e do direito de cada um e cada uma expressar sua religião, teríamos que ter profissionais do ensino — professores e professoras — de todas as religiões praticadas no Brasil em cada escola, ‘para promover o conhecimento cultural, histórico, geográfico e arqueológico’ do conteúdo de cada uma das crenças. Cada pessoa tem o direito de professar sua fé da forma que lhe convier, ou seguir uma filosofia de vida, desde que isso não fira as leis nem o direito do outro. Ninguém tem o direito de impor sua crença religiosa a outrem.” 

Sobre a chamada desonestidade ideológica, Mirinho acrescenta que a proposta de leitura da Bíblia nas escolas aparenta ser benéfica, mas esconde um projeto de poder antidemocrático promovido por lideranças de supostos “cristãos” de extrema-direita — especialmente neopentecostais —, baseado na chamada “Teologia do Domínio”. 

“Por trás da proposta está um projeto de poder que submete o Estado a visões ou crenças religiosas, desrespeitando as diferenças. Isso enfraquece o papel do Estado de promover a igualdade, a fraternidade e o respeito à diversidade de credo, raça e cor, além de comprometer a promoção da paz”, conclui. 

“CCJ deve declarar o projeto inconstitucional” 

A médica Júlia Soares, presidente do PSOL Itaúna, também se posicionou contra o projeto. Segundo ela, por vivermos em um Estado laico, a proposta é inconstitucional e deve ser barrada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. 

“Quero também questionar: que tipo de cristianismo essa dita bancada religiosa, coordenada pelo vereador Kaio Guimarães, quer inserir nas escolas? Que tipo de cristianismo é esse? Um cristianismo que alimenta a cultura do ódio e que não tem relação com a mensagem de Jesus. Um cristianismo preconceituoso, voltado para um projeto de poder desses vereadores de extrema-direita. É o ‘Deus acima de todos’ deles — e isso não é necessariamente cristianismo”, critica. 

Dra. Júlia alerta que essa visão está cada vez mais presente nas igrejas brasileiras por meio da chamada “teologia da prosperidade”, que prega que os mais abençoados são os que mais acumulam bens materiais, ignorando a mensagem essencial de Jesus: a luta contra a opressão. 

“Jesus foi um homem negro, periférico, que sofreu as dores daqueles que vivem nas margens da sociedade. Ele sabia que há algo maior na espiritualidade, mas também nos ensinou que devemos ser agentes de transformação no nosso tempo e lugar. Essa é a verdadeira missão que Jesus nos dá.” 

Para ela, os parlamentares não desejam compartilhar essa mensagem nas escolas. “O que eles querem é ensinar a Bíblia de forma a tornar a juventude ainda mais conservadora. Esse projeto, além de inconstitucional, aprofunda o vácuo de diálogo e impõe um cristianismo que sufoca o debate e enfraquece a democracia.” 

Dra. Júlia finaliza: “nem a minha ideologia, nem a deles, deve ser imposta, pois trata-se de uma religião específica. O Estado é laico, e justamente por isso, não devemos privilegiar nenhuma religião nas escolas. Mas também devemos nos perguntar: que tipo de cristianismo se quer ensinar? Essa é a reflexão que precisa estar no centro do debate.” 


Pai de Santo critica projeto de lei: “Racismo religioso institucionalizado” 

Maicol Amorim, líder religioso da Comunidade de Religião de Matriz Africana

Axé Itaúna, vê retrocesso e afronta à Constituição Federal

Para Maicol Amorim, Bàbálòrìsà do Ilê Àṣẹ Ẹgbẹ Ògún, da Comunidade Axé Itaúna, a iniciativa representa uma violação do princípio constitucional da laicidade do Estado e é mais um exemplo de racismo religioso institucionalizado. 

“Essa é uma discussão que se arrasta em diversas tentativas do conservadorismo e de alguns cristãos extremistas que não são capazes de elaborar um raciocínio a partir de outro ponto de vista senão o deles próprios”, afirma o pai de santo. 

Amorim destaca que a Constituição Federal é clara em seu artigo 5º, inciso VI, ao garantir a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção a seus locais e liturgias. Para ele, o projeto de lei ignora esses fundamentos ao privilegiar uma única tradição religiosa em um ambiente que deveria ser neutro em relação à fé dos estudantes. 

“A Constituição é a carta magna deste país e não pode ser ignorada às claras dessa forma. Estamos sendo vítimas de racismo religioso em diversos âmbitos, e o Estado tem sido conivente, por ter representantes majoritariamente cristãos ocupando espaços de poder que a nossa fé ainda tem dificuldade de acessar”, denuncia. 

O pai de santo lembra ainda que o Supremo Tribunal Federal já reconheceu, em decisão anterior, que a presença de símbolos religiosos em espaços públicos não viola a laicidade do Estado — mas esse entendimento, segundo ele, deve se aplicar a todas as crenças de forma equânime.

“Se a cruz cristã pode estar em órgãos públicos, por que não o símbolo iorubá da Justiça, o oxê, machado de Xangô?”, questiona. 

A comunidade Axé Itaúna, através do IDAFRO, Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões de Matrizes Africanas, promete seguir atenta e mobilizada. “A nossa luta é por respeito, igualdade e pela verdadeira liberdade religiosa, como está previsto na Constituição”, conclui Amorim. 

“Privilégios exclusivos à tradição cristã” 

Já o pai de santo Rodrigo Lima, Ty Oyá, líder do Terreiro Oyá Giga Belê de Egun Nita, no bairro Piedade, expressou forte preocupação com o Projeto de Lei que propõe o uso da Bíblia como ferramenta paradidática nas escolas públicas e privadas do município. Ele afirma que, ao privilegiar exclusivamente a tradição cristã, a proposta fere os princípios fundamentais de um Estado laico e ameaça diretamente a pluralidade religiosa do Brasil, que inclui, além do cristianismo, as religiões de matriz africana, indígenas, espíritas e muitas outras expressões de fé. 

Segundo Ty Oyá, a Constituição é clara ao garantir a liberdade de crença e o direito à igualdade, direitos que se estendem também ao ambiente escolar. “O que está em jogo aqui não é apenas uma questão de fé, mas de respeito à diversidade religiosa e à dignidade de todos os brasileiros, independentemente de suas crenças”, afirmou. Ele destaca que a imposição de uma visão religiosa única dentro das escolas contribui para o apagamento das demais tradições e reforça a exclusão de alunos que professam outras religiões ou mesmo nenhuma. 

“O espaço escolar deve ser, antes de tudo, um espaço de inclusão e respeito, não de doutrinação”, alerta. Para o religioso, a discussão não deve ser sobre permitir ou não a religião na escola, mas sim sobre como abordar a religiosidade de forma plural e educativa. “Se houver ensino religioso, que seja para promover o conhecimento sobre as diferentes tradições, ampliando o olhar dos estudantes e promovendo o respeito mútuo, e não para reforçar preconceitos ou privilégios históricos”, argumenta. 

Ty Oyá também chama atenção para o impacto social de leis como essa, que, segundo ele, alimentam a intolerância religiosa e perpetuam o racismo religioso. “A gente sabe o que acontece quando se legitima, institucionalmente, uma religião em detrimento das outras. Isso incentiva o ódio, o desrespeito e o preconceito, especialmente contra as religiões de matriz africana, que já são historicamente marginalizadas e perseguidas.” 

O pai de santo encerra lembrando que a Constituição não pode ser relativizada por interesses religiosos ou ideológicos. “Não estamos pedindo privilégio, estamos exigindo respeito e a garantia de direitos que já são nossos. O Brasil é diverso, e as escolas devem refletir essa diversidade — não apagá-la.”