MEMÓRIAS DE MINHA CIDADE

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Lembranças degustativas  de um menino guloso

Sílvio Bernardes

Sempre gostei de comer. Mastigar era um dos meus  movimentos constantes numa linguagem facial muito explícita e que me auxiliaria algum tempo depois  nas aulas de teatro. Eu comia de tudo. Meus pratos, simples, eram limpos a cada refeição, sem sobrar grão sobre grão. Hoje, quase um senhor de idade, continuo prestigiando um bom prato e digo, com desfastio, que nada me faz mal, embora há algum tempo deixei de comer carne, por opção (e influência de minha filha vegana). Adoro receber convites de reuniões que tenham o de comer e o de beber – e, claro, um lugar para me sentar.

Então, em minha memória afetiva há um lugar de destaque para os sabores dos alimentos de que provei e agradei, como as frutas maduras da chácara do “seu” Umberto Salera, lá no alto do Rosário. Tinha de tudo naquele quintal maduro: mangas de várias qualidades, goiabas brancas e vermelhas, laranja, mexerica, banana, jambo, pêssego, pauzinho-doce, cagaiteira, coquinho, jatobá, mamacadela, jabuticaba, gabiroba, pitanga, acerola, lima etc. Naqueles tempos eu era um moleque de rua. Vivia na rua, brincando e trabalhando. Vendia picolé Cremel e, mais tarde, Eskimone, delícias no palito que não existem mais. No Cine Rex, as sessões de todas as horas me tinham como vendedor de balas, dropes, chocolates e outras delícias que me estragavam os dentes, sujavam minha cara imberbe e comprometiam fundamentalmente meus minguados vencimentos de baleiro. Também era engraxate na Praça da Matriz e nas casas de um povo cheio da grana – na minha cidade sempre teve dessas coisas. Do povo que contratava meus serviços eu ganhava sempre algum agrado de cumê. Era uma fruta, um pão com salame ou um pão véio. O povo às vezes confundia-nos, os moleques engraxates, com esmoleiros. Na praça, eu sempre comprava uns comes e bebes –  porque, como dizia minha mãe, eu tinha o olho maior que a barriga e uma fome canina – também afetando meu ganhame de engraxate. Era vitamina de abacate, de banana e de amendoim, das lanchonetes dos dois Antônios; pão moiado (inesquecível) e groselha do “seu” Antóim do Tip Top (na Praça do Capeta) e mandioca com torresmo (inesquecível também) no Bar do Cilico.  No Bar Azul, ao lado do banco do Brasil, eu tomei minha primeira coca-cola e senti aquela cosquinha diferente no nariz, provocado pelo gás. Ali também eu chupava cremosos picolés roliços. A família comprava do Bar Azul um delicioso bolo de farinha de trigo com erva doce que jamais provei noutro lugar. Até hoje eu sonho com esse bolo. O Bar Azul era ladeado à direita pelo Buraco do Tatu, do Chico, que vendia umas coisinhas muito gostosas que cabiam nos parcos orçamentos daquela meninada. Do lado esquerdo era o Barril, ou o Bar do Miranda, que servia um pão com molho e pasteis sequinhos, de comer de joelhos. O “seu” Miranda, pai do Culei e do Manel, era um grande sujeito, desportista e piadista. Ele sempre me chamava de “Baixinho”, mesmo depois que aposentei a caixa de engraxate e pus barba e bigode na cara, embora não tenha crescido muito.

Ainda na Praça da Matriz eu comia, com os olhos e com a boca, as pipocas feitas pelo Dico e os pés-de-moleque do Marta Rocha. Pé de moleque bom de dar água na boca também era o da Mariângela do seu Ari. E tinha também a cocada do Zezinho, o quebra-queixo do home lá do Reinado, o pirulito puxa-puxa e os confeitos da dona Isabel, a coxinha do bar do Carneirinho, a garapa de cana do Calixto, a engrenagem e a broa de milho da padaria do Zé Caetano, o mexidão do restaurante Carlos Angolano, o PF do Sandoval… Noutros tempos, já um jovem repórter do “Jornal Brexó”, pude experimentar pela primeira vez, com muita alegria e emoção, um filé à parmegiana. Estava em companhia do então vereador Geraldo Gatão e outros parceiros. O restaurante era um ambiente modesto, que não existe mais, ao lado da Farmácia Nogueira, que também não existe mais.  As memórias degustativas permanecem na minha mente e na boca, que chega a virar um corgo.

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