Não basta prender, é preciso recuperar

0
312
Valdeci Ferreira*

A pena no Brasil tem uma dupla finalidade: punir e recuperar. Punir é do caráter retributivo da pena, e recuperar é da sua essência. Nesse caso, quando o sentenciado, após o cumprimento de uma pena privativa de liberdade, sai da prisão pior que entrou e reincide no crime, significa que a pena não alcançou o seu propósito, o que consideramos uma enorme perda de tempo e de recursos públicos. Não por acaso, segundo o anuário do CNJ “Justiça em Números” do ano de 2011, o círculo vicioso do prende e solta, alcança índices de reincidência de 70%.

Foi esse o contexto que norteou os trabalhos da comissão que se debruçou com afinco na elaboração da Lei de Execução Penal de 11 de julho de 1984. Uma lei moderna, inspirada na legislação de países mais avançados em matéria penal, que consagrou os direitos e os deveres das pessoas presas, garantiu a progressividade de regimes – fechado, semiaberto e aberto, contemplou o instituto das saídas autorizadas em família em datas comemorativas para aqueles que se encontram no regime semiaberto e que possuem mérito, e ainda estabeleceu outros dispositivos que possibilitam ao sentenciado da Justiça caminhar aos passos rumo à liberdade, e não aos saltos, sempre em vistas da proteção da sociedade.

Entretanto, sob o argumento da inexistência de vagas nas “casas de albergados”, nos últimos anos os presos condenados em regime aberto (pena de até 4 anos), são automaticamente beneficiados com a prisão domiciliar, a propósito, raramente fiscalizada.

De igual modo, sob a justificativa absurda da inexistência de vagas em regime semiaberto – colônias agrícolas, industriais ou similares, diversos estados passaram a substituir a sanção que deveria ser de privação de liberdade (pena de 4 a 8 anos), para regime semiaberto domiciliar. Em alguns estados, tal regime foi denominado de “regime semiaberto harmonizado”, o que significa permanecer em casa com o uso de tornozeleiras. Diga-se de passagem, que as tornozeleiras, além de serem facilmente burladas, indicam no máximo onde a pessoa se encontra, jamais o que ela faz. Vale registrar que em diversas comarcas do Brasil, os presos simplesmente vão pra casa após a decretação da sentença, dada a inexistência dos dispositivos eletrônicos.

Lado outro, existem magistrados e membros do Ministério Público que resistem bravamente contra o retrocesso da LEP, pois sabem que o cumprimento integral da lei contribui para a recuperação do delinquente, e por conseguinte, promove a proteção da sociedade. Porém, cada vez mais, esses se tornam vozes isoladas.

Como se não bastasse, valendo-se de um casuísmo, recentemente deputados e senadores aprovaram a Lei nº 14.843/2024, que extinguiu o instituto das saídas autorizadas como período de prova para aferir se o sentenciado se encontra apto para alcançar a progressão para um regime mais brando de cumprimento de pena, acabando de vez com a possibilidade de o preso reintegrar-se ao seio da sociedade paulatinamente, e não de modo abrupto como já vem ocorrendo.

Salvo melhor juízo, tudo indica que a decisão dos nobres parlamentares contribuirá tão somente para acelerar o fim do regime semiaberto nas comarcas onde ainda é aplicado, e os que acreditavam ter extinto os 35 dias de saídas autorizadas em família, doravante passarão a conceder 365 dias de impunidade.

E mais uma vez será a comunidade a arcar com os prejuízos.

*Valdeci Ferreira

Advogado e teólogo, é diretor do Ciema (Centro Internacional de Estudos do Método APAC) e vencedor do Prêmio Empreendedor Social 2017