Na semana passada, em pleno 8 de março – Dia Internacional das Mulheres – um dos políticos de maior destaque nas últimas eleições brasileiras chamou a atenção não por ter um discurso a favor da população ou por causa de um projeto que sanasse necessidades básicas como alimentação, saúde ou moradia, o que entendemos como o real ofício daqueles que governam. Nikolas Ferreira, que é deputado mineiro pelo Partido Liberal (liberal mesmo?), roubou a cena quando destilou transfobia, na Câmara, num modo cênico, histérico e que pode levantar até algumas perguntas por causa dessa espécie de “fetiche” do parlamentar, sempre falando e atacando pessoas trans e travestis. Curiosamente, um homem que destila a ideia de virilidade vestiu uma peruca loira, em público.
Mas Nikolas não está sozinho. Não foi à toa que ele recebeu 1.492.047 votos, sendo o deputado mais escolhido em Minas, no ano passado. Dessa forma, podemos concluir que, de alguma maneira, o deputado que se “vestiu de mulher” para atacar mulheres trans e travestis está representando o pensamento de boa parcela do seu eleitorado, para não dizer todo ele. E o fato de ter sido escolhido dentro de um sistema democrático (que ele mesmo questiona a sua validade) não significa que os fundamentos das escolhas não sejam questionáveis. Respeitemos os resultados, sempre. Questionemos para onde estamos indo com essas escolhas, sempre também.
O Brasil é o país que vive liderando o ranking de assassinatos de pessoas LGBTQIAPN+ no mundo, ano após ano. Quando fazemos o recorte específico sobre pessoas trans e travestis, a expectativa de vida delas é de apenas 35 anos. Imagine você, pessoa cisgênero (pessoa que se identifica com o gênero que lhe foi atribuído socialmente, geralmente por causa da genitália), ao concluir 35 anos, saber que há uma tendência a não ultrapassar essa idade pura e “simplesmente” por causa do ódio social. E por qual motivo esse ódio? Porque você não se identificou com uma escolha que foi feita para você sobre quem você é, como deve se sentir, o que deve vestir, como deve ser seu corpo, etc. E quais são os fundamentos disso? Vamos a algumas respostas.
Não entrarei em detalhes a respeito do aspecto religioso, visto que o espaço é curto para detalhar em poucas linhas um tema que gera mais opiniões que fatos. Entretanto, há algo que fundamenta muitas religiões e que inflama discursos em púlpitos e altares, e penso que podemos avançar mais por essa via de reflexão: há uma crença quase inflexível de que a nossa anatomia, aos modos do mecanicismo, está destinada a definir o nosso desejo. Em estudos de gênero, dizemos “sistema sexo-gênero-desejo”, ou seja, questionamos essa “ordem natural” que nos levaria a um automatismo em relação à nossa sexualidade, às nossas identificações de gênero e por quais “tipos” de pessoas sentimo-nos atraídos.
O que advogo aqui é que seja através de fetiches fantasiosos travestidos de “defesa da família tradicional”, seja por assassinatos diários de pessoas que não se identificam com a “norma”, uma das raízes da transfobia é a falta de conhecimento científico sobre como funciona a sexualidade humana. Quando alguém afirma que uma pessoa não pode “mudar de sexo” (esse termo está popularizado, mas é inadequado atualmente; o termo correto é afirmar o gênero), um dos seus embasamentos é a ignorante ideia de que nós, seres humanos, funcionamos na mesma configuração da matemática ou da física. De que os nossos desejos e vontades estão programados pela biologia, havendo uma disfuncionalidade quando tomamos direções diferentes daquelas esperadas.
Isso não é “apenas” uma opinião particular de pessoas transfóbicas. Isso é falta de conhecimento real de como as coisas funcionam. E, por mais que possamos encontrar um bocado de gente escolarizada que destila ódio e venera figuras como a do parlamentar mineiro, há ainda um elemento que contribui bastante para a perpetuação da transfobia, que é a falta de acesso à educação ou o acesso à educação de baixa qualidade. O acesso à de baixa qualidade, inclusive, talvez tenha impacto ainda mais profundo. Basta vermos que Nikolas é um influencer cercado de seguidores. A educação escolar, só agora e com poucas manifestações ainda, está começando a se dispôs a discutir as questões de gênero em sala de aula, embora não faltem esforços de muitos governos e até pais e mães para impedirem os debates.
Enquanto reproduzirmos os mesmos modelos milenares de viver, seguiremos com as mesmas demandas, o mesmo extermínio social, a mesma aniquilação de quem é diferente, mesmo sem conhecê-lo. Mas é como canta Caetano: “é que Narciso acha feio o que não é espelho”.
Nilmar Silva é Psicólogo (CRP 04/47630) e Filósofo, Especializando em Sexualidade, Gênero e Direitos Humanos; Especialista em Docência do Ensino Superior e MBA em Gestão de Pessoas. Atua clinicamente com foco na Saúde Mental de pessoas LGBTQIA+.
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