POXA, POESIA NUMA HORA DESSAS?

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@toniramosgoncalves*

HL tirou a cerveja do freezer e a colocou sobre o balcão. Sob o olhar dos amigos que o miravam, levantou os braços e disse, num tom enérgico:

– Poxa, poesia numa hora dessas?

A gargalhada foi geral. Eles já esperavam essa reação dele. Pegou a cerveja e sentou-se novamente à mesa.

– Puxa vida…, – deu um gole na cerveja long neck e continuou – um monte de questões assombrosas e contundentes nestes tempos sombrios, e vocês querem mudar o mundo com poesia? Fala sério.

– Opa, opa, opa! – interrompeu TR, gesticulando com o braço direito – Vocês, vírgula. Não é bem assim não. Poetas aqui são somente estes dois xarás: PN e PS. Eu e o SB somos jornalistas.

Os outros riem, concordando.

Então, PN, o mais jovem e o mais racional do grupo, pediu licença para declamar um poema de Ferreira Gullar, de quem era fã:

– A poesia / quando chega / não respeita nada. / Nem pai nem mãe. / Quando ela chega / de qualquer de seus abismos / desconhece o Estado e a sociedade civil, / infringe o Código de Águas, / relincha / como puta / nova / em frente ao Palácio da Alvorada.

Uma salva de palmas veio dos amigos, claro, menos de HL, que insistiu:

– Poesia é pura utopia. Não serve para nada. Apenas para alegrar nossos encontros. Isso sim.

– Oh, HL, a poesia, é por si, um ato de resistência – contestou SB, virando o resto de vinho da taça. – Com profundo desejo de transformação, os versos se rebelam contra as mazelas sociais e conquistam alta voltagem de mobilização. É a poesia engajada, indignada e insubordinada.

Diante o ótimo argumento do amigo, TR sugeriu um brinde à poesia. Ergueram seus copos, com vinho ou cerveja. Um viva ecoou pela área de lazer do anfitrião PN. Chovia fino lá fora, naquela noite quente de verão.

– Amigos, vou abrandar o coração do nosso antipoeta HL com um dos meus poemas – disse PS, ficando em pé e gesticulando os braços. – É mais fácil ser um poeta / do que viver a poesia: / invento uma rima reta, / mil versos à luz do dia, / mas nada aqui se completa… / tudo apenas prenuncia.

– Bravo! Bravo!

HL fez cara de riso e pediu para alguém conectar seu Spotify na caixa de som.

SB pediu licença para recitar alguns versos de Alice Ruiz e, se posicionando à frente de HL, disse:

– Socorro, alguma alma, mesmo que penada,/ me empreste suas penas./Já não sinto amor nem dor,/ Já não sinto nada./ Socorro, alguém me dê um coração,/ que esse já não bate nem apanha./ Por favor, uma emoção pequena,/ qualquer coisa que se sinta,/ tem tantos sentimentos, /deve ter algum que sirva.

Mais aplausos e risadas.

– Vocês já beberam demais, tão é me tirando – reclamou HL, virando o resto da cerveja na garrafa. – Pega outra para mim, TR.

CB, que até aquele momento observava, surpreendeu a todos recitando um poema de Fernando Pessoa:

– O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente./ E os que leem o que escreve,/ na dor lida sentem bem,/ Não as duas que ele teve,/ Mas só a que eles não têm.

Os amigos aplaudem, e uma euforia toma conta do ambiente.

Enfim, começa a música “O mundo é um moinho” do músico Cartola. Quem conhece a letra canta e tamborila os dedos na mesa. SB elogia a letra da música, e todos concordam. Uma porção de fritas e mandioquinha é servida, preparados pelo pai do anfitrião, que também oferece uma cachaça envelhecida há dez anos. A “danada” circula num copo onde todos bebericam. Ao chegar em PS, agora o álcool falando mais do que ele, recita outro poema de sua autoria:

– O sentido de tudo,/ dizer, quem o sabe?/ Que eu saiba, ninguém./ E qualquer conteúdo na verdade não cabe,/ nem merece um amém./ São palavras perdidas,/ tentando explicar/ um porquê infinito,/ da morte e da vida,/ sem respostas a dar,/ num dilema de mitos.

Mais palmas, mais um brinde à poesia.

Nem a chuva que engrossa atrapalha a animação; só reparam que o jardim encharca muito rápido.

– Enquanto a chuva não passa, a gente bebe mais um pouco – orienta CB, abrindo mais uma cerveja.

Todos apoiam a ideia.

HL levanta-se com destino ao banheiro. Ao tentar subir os degraus, cambaleia e se esforça para manter o equilíbrio. SB puxa TR para mais perto e cochicham, rindo calados diante da cena. Quando ele chega ao topo da escada, todos comemoram, como se tivesse vencido o pior dos obstáculos, e recitam ao mesmo tempo uma paródia do famoso poema de Carlos Drummond de Andrade:

– No meio do caminho tinha um degrau / tinha um degrau no meio do caminho / tinha um degrau / no meio do caminho tinha um degrau.

– Ok, amigos, ok! Vocês venceram. Eu me rendo – falou, levantando os braços. – Parafraseando Ferreira Gullar: A arte, não, peraí… A poesia existe porque a vida não basta.

E foi um viva geral.

E, antes de sumir de vista na porta do banheiro, HL pediu:

– Selecione o Belchior na playlist que já estou voltando.

* Toni Ramos Gonçalves

Professor de História, Escritor, Editor, ex-presidente e um dos fundadores da Academia Itaunense de Letras – AILE. Graduando em Jornalismo.