Professora vai à Câmara e se posiciona contrária ao projeto de lei que impõe censura a eventos nas escolas

Proposição de autoria dos bolsonaristas, vereadores Kaio e Ener foi aprovada por unanimidade e quer que comissão de pais avaliem conteúdos de palestras e eventos artísticos antes de serem apresentados aos alunos

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O temporal que caiu na cidade na tarde de terça-feira (31) cortou a energia elétrica da Câmara Municipal e encerrou antes da hora a reunião ordinária. No momento da queda de energia a professora Marci Gonçalves de Campos Souza usava o espaço da Tribuna Livre para tratar da aprovação de um projeto de lei que impõe às escolas no município regras para a realização de eventos extraclasse, como espetáculos teatrais, musicais, palestras etc. A proposição, que muitos estão chamando de censura, é de autoria dos vereadores bolsonaristas Kaio Guimarães (PSC) e Ener Batista (União Brasil), e foi aprovada por unanimidade.

O Jornal S’PASSO teve acesso ao conteúdo integral da fala interrompida da professora Marci Gonçalves, que iniciou sua explanação afirmando que as motivações de sua ida àquela reunião são as suas convicções políticas e sua experiência profissional na área da educação que soma mais de 34 anos. Ela enumera algumas preocupações em relação ao Projeto de Lei 130/2023, “que dispõe sobre a vedação da promoção de temas relacionados ao fomento de ideologia de gênero, sexualização precoce ou qualquer outro incompatível com a faixa etária dos alunos da rede pública ou privada do município de Itaúna”.

Proibir o que não existe

“Primeiramente queria ressaltar que no meu entendimento uma lei só é proposta com o objetivo de vedar algo, quando o objeto da proibição está efetivamente e comprovadamente acontecendo. Então, eu pergunto: vocês embasaram a decisão a favor da aprovação desse projeto em algum estudo, pesquisa, dissertação de Mestrado, tese de Doutorado que confirmem a incidência desses fatos nas escolas do Município? Vocês acreditam que uma peça teatral, palestra, oficina pedagógica ou qualquer outra manifestação semelhante, no âmbito escolar, é capaz de alterar a maneira como o sujeito se vê em relação ao sexo e gênero?”, questiona.

Vereadores, explicitem o que é “ideologia de gênero”

Em sua fala, Marci Gonçalves, solicita que os vereadores explicitem aos educadores em que consiste a “ideologia de gênero” na sua concepção, uma vez que estudos sobre a sexualidade humana, identidade de gênero não é uma “ideologia” que busca confundir a cabeça das crianças nem “transformar meninos em meninas” ou vice versa, como andam dizendo por aí. A expressão, na verdade, refere-se à maneira como cada pessoa se enxerga como indivíduo e se expressa na sociedade, independentemente do seu sexo biológico.

“Ideologia de gênero é uma Fake News criada com objetivos eleitoreiros e está sendo ressuscitada com o mesmo objetivo. Recentemente, assisti a um vídeo de uma apresentação teatral numa igreja evangélica da nossa cidade, onde uma das jovens interpretava o papel de um jovem homem. Será que durante a apresentação dessa peça teatral caseira, os jovens estavam fomentando a tal ideologia de gênero?”, argumenta.

Proposição limita atividades escolares

A professora afirma que alguns educadores partilharam com ela dúvidas como: “agora a gente não vai poder fazer uma dramatização para as crianças fazendo papéis masculinos ou femininos? Se isso será considerado ideologia de gênero, e mais, como a escola vai possibilitar às crianças experiências de brincadeira, dramatizações, jogos simbólicos – tão importantes para o desenvolvimento infantil, previstos na Base Nacional Comum Curricular, “se estamos sendo ameaçados com advertência, suspensão, processo administrativo, perda do cargo?”.

Censura é para governos totalitários

O texto da oradora na Tribuna Livre adverte que a na democracia não existe espaço para censura. “A censura é própria de governos totalitários. E ainda, a escola pública é para todos: filhos de cristãos, mulçumanos, religiões de matriz africana, filhos de ateus, pobres, ricos, filhos de dois pais, filhos de duas mães, filhos de mãe solo, filhos de pai solo e tantas outras organizações familiares. Portanto, não podemos estabelecer um modelo de comportamento baseado em religião ou ideologia de uma classe social. Lembrem-se o estado é laico.

A criança ou adolescente traz para a escola vivências e experiências que são compartilhadas e contribuem muito para a formação do sujeito. Falar de diversidade é explicar que a sociedade é composta por diversos grupos de pessoas e que estes precisam ser respeitados, independente da orientação sexual, da identidade ou da comunidade que fazem parte. Sejam eles homens, mulheres, crianças, idosos, indígenas, quilombolas, travestis, gays, lésbicas, trabalhadores do campo ou trabalhadores urbanos. Falar de diversidade nas escolas é ensinar às crianças a não terem preconceito nem excluir outras pessoas; é ensinar que é preciso saber acolher e respeitar, porque quando excluímos uma criança dentro da escola, contribuímos para que ela desista dos estudos”, pontua.

Em vez de dar ‘pitaco’, vamos somar aos esforços dos educadores

Para a professora, os pais que não concordam com essa pluralidade na escola pública, só lhes resta matricular seus filhos numa escola particular que esteja adequada à sua ideologia. “Para finalizar, é importante dizer que o exercício do magistério impõe muitos desafios. Ser professor, pedagogo, gestor escolar não é fácil. Se tem uma área em que todos dão pitaco é a Educação. De todos os lados, vêm demandas, críticas, sugestões sobre o que, para que, como e quando ensinar. Deixem os educadores cumprirem o seu papel. Foi para isso que estudamos e nos preparamos. Ninguém vai ao mecânico para curar um dente cariado. Quem entende de dente é o dentista. Quem entende de educação são os educadores. Vocês querem realmente ajudar as crianças e estudantes no que realmente importa? Vamos somar esforços e combater os reais problemas da educação: infrequência, crianças e adolescentes fora da escola, a violência contra os profissionais da educação, o abuso sofrido por crianças e adolescentes e tantas outras mazelas que vivenciamos no dia a dia da escola”, ressalta.