Imagine a cena: a criança fazendo as tarefas escolares não numa sala de aula ou num ambiente destinado ao trabalho de campo, junto com colegas, mas em casa. Em tempos de pandemia da Covid-19, com a obrigatoriedade do isolamento social, a cena é comum em grande parte dos lares do planeta. Mas, em épocas passadas, não muito distantes, fora da recomendação de que as pessoas evitem a aglomeração e fiquem em casa, a cena é inusitada, embora haja diversos casos da aplicação de ensino domiciliar ou ensino doméstico, que os ingleses chamam de homeschooling.
Em diversos países, como Estados Unidos, Áustria, Bélgica, Canadá, Austrália, França, Noruega, Portugal, Rússia, Itália e Nova Zelândia, o ensino domiciliar é autorizado, em outros, como Alemanha e Suécia, é proibido por lei. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal – STF não apontou qualquer inconstitucionalidade para a prática do ensino domiciliar, no entanto, a matéria não foi aprovada por falta de uma lei que a regulamente. Alguns ministros do STF defenderam essa posição, de “que não se trata de um direito, mas sim de uma possibilidade legal ainda sem regulamentação”, ao contrário de alguns juristas que apontam para sua inconstitucionalidade. Para esses, a proposição é um crime, previsto no artigo 246 do Código Penal, ou seja, ocorre quando o pai, mãe ou responsável legal deixa de matricular o filho em idade regular em alguma escola pública ou privada autorizada pelo Ministério da Educação. Em Itaúna há quem queira as crianças e jovens estudando em casa e tendo o ensino domiciliar como propósito. O vereador Joel Márcio Arruda (PL) encaminhou à Câmara, projeto de lei instituindo essa modalidade de ensino para a educação básica do município (ensino fundamental e médio). “Possibilita a educação domiciliar de crianças e adolescentes dirigida pelos pais ou responsáveis legais”, diz o texto da proposição nº 2/2020.
Em vídeo, compartilhado nas redes sociais, Joel afirma que “têm famílias que querem educar seus filhos em casa e não levá-los para a escola… os próprios pais podem ensinar seus filhos, ou contratar algum professor, alguma pessoa preparada para fazer isso”. Entretanto, o prefeito encaminhou à Câmara o veto total ao projeto do parlamentar, argumentando que o mesmo esbarra em “vício de iniciativa, de natureza insanável”, uma vez que a criação de leis referentes à organização de serviços públicos é exclusiva do chefe do executivo. Além disso, por ser matéria de educação, o vereador estaria contrariando a competência da iniciativa, que é exclusiva da União, dos Estados e do Distrito Federal, disposta na Constituição Federal.
“Trabalhando para manter o veto”
Apesar de o projeto de Joel Arruda ter sido aprovado por ampla maioria, uma vez que apenas o vereador Gleison Fernandes de Faria (PSD) votou contra a proposta, o veto do prefeito deve ser mantido, segundo Hudson Bernardes (PSD), da base aliada. Ele disse à reportagem, que a proposta de Arruda não foi bem analisada por ele e pelos colegas e reconhece que houve erro quando de sua aprovação, sem uma ampla consulta acerca do assunto. Hudson disse que esse equívoco poderá ser corrigido com a manutenção do veto total do prefeito à matéria, o que poderá ocorrer na próxima semana.
Caiu na rede: não ao homeschooling
Tão logo a matéria de Joel Arruda chegou ao conhecimento da sociedade, uma onda de postagens contrárias ao tema tomou conta das redes sociais, sobretudo no facebook. E a expectativa de que o veto do prefeito ao projeto de lei fosse analisado esta semana pelos vereadores, também não aconteceu. Diversas pessoas ligadas à educação estão se manifestando de forma virtual com raivosas críticas ao vereador proponente e pedindo que os demais vereadores se oponham à matéria. Recentemente foi criado um site: “Educação Itaúna – Todos pela Educação”, que divulgou o vídeo do vereador Joel Arruda e diversos comentários acerca do seu projeto de lei. Muitos dos seguidores desse grupo estão utilizando o hashtag #NãoaoEnsinoDomicilar (Diga não ao homeschooling).
Estudos sobre a homeschooling são objetos de pesquisas acadêmicas em Itaúna
O tema ensino domiciliar ou homeschooling desperta interesse em muitas pessoas, como o professor itaunense Cláudio Márcio Bernardes, estudioso do assunto. A homescooling foi objeto de pesquisa de sua dissertação de mestrado e, agora, é da tese de doutorado. Bernardes é funcionário do Ministério Público em Itaúna, (na Vara da Infância e da Juventude), graduado em Letras, Direito e Pedagogia, mestre em Direitos Fundamentais pela Universidade de Itaúna e doutorando em Educação pela PUC-Minas. À reportagem do S’PASSO, Cláudio Bernardes conta que se interessou pelo tema trabalhando na Curadoria da Infância do Ministério Público. Começou quando chegou no MP um processo sobre ensino domiciliar, acionado pelo Conselho Tutelar que atua em situações de descumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente e Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Então, a partir disso, ele modificou seu objeto de estudo do mestrado para a homeschooling. Hoje, na pesquisa de doutorado, ele propõe um estudo comparativo do fenômeno social do ensino domiciliar no Brasil e o ensino doméstico em Portugal (lá é assim chamado). Bernardes faz um passeio pela história da homeschooling, como um movimento mundial iniciado nos anos de 1970, sobretudo nos Estados Unidos, como proposta de “levar a escola para dentro de casa”, com todo o formato pedagógico da escola para o ambiente domiciliar. Ele afirma que o que tem ocorrido hoje difere da proposta original, porque a escola, mais que educação formal, é ambiente de socialização, “socialização secundária”, a primeira é a família. No Brasil, lembra, não é permitido esse tipo de educação, mas também não existe uma proibição explícita, há situações em que se propõe essa modalidade a partir de projetos de lei, uma vez que há cerca de 30.000 famílias que adotam o ensino domiciliar no país.
Em tempos de pandemia, devido ao coronavírus, inúmeras famílias se veem obrigadas a intermediarem o processo de educação das crianças e adolescentes. Isso não é homeschooling, afirma o estudioso, é uma forma de praticar o ensino em casa, com vídeo-aulas, com acompanhamento de atividades. Cláudio Bernardes disponibiliza em formato online o livro “Ensino Domiciliar (homeschooling) no Brasil: uma abordagem ético-jurídica”, resultado de sua pesquisa para o mestrado, através do endereço: https://www.editorafi.org/591claudio.