QUE HISTÓRIA É ESSA?

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Sílvio Bernardes
smabernardes@hotmail.com

A Dona Léa da Prefeitura

DONA LEA

Vejo uma postagem da prefeitura no Instagram. De luto, mas poderia ser de luta. A morte de uma mulher simples, humilde até, que eu conheci nos tempos de minha mocidade. Se chamava Léa (de Oliveira Gomes) e  com ela eu tive poucas conversas, mais por conta de sua introspecção do que da minha invariável falastrice. Houve uma época, lá atrás, em que experimentei uns trabalhos braçais numa cerâmica na Vila Mozart. Eu era de uma incompetência para aquele serviço que em pouco tempo o patrão correu comigo. Mas aquela senhora – sim, ela já era uma senhora, de nome Léa, era habilidosa e danada para os afazeres pesados, como a minha mãe, temperada na lida difícil da gente pobre, que sabe, faz a hora e não espera acontecer. A Léa era uma operária da cerâmica da Vila Mozart. Empurrava carrinhos, cheios de barro e de tijolos, o dia inteiro, com uma valentia de quem só pode contar consigo mesmo, como se não houvesse amanhã. Eu ficava embasbacado com aquela movimentação toda na cerâmica de tijolo furado. Eu era um menino e ela uma mulher que ia à luta diariamente com o suor do próprio rosto, literalmente. Em silêncio eu a admirava e, talvez, questionava: é preciso ser assim mesmo? Onde estão as vertentes do modo de produção?  Aqui há mais-valia, como ensinara um certo alemão famoso? A exploração do trabalho humano anda por este lugar? Será que eu questionava isso mesmo? Acho que não. Tinha certeza apenas que essa dona era intrépida. Dava conta sozinha de uma boa parcela do trabalho, enquanto o patrão fazia cara de paisagem e contabilizava os lucros. Na Prefeitura voltei a encontrá-la noutros tempos. Ela continuava irrequieta com suas tarefas de empregada simples. Eu era da assessoria de imprensa e compunha uma rotina apropriada  daqueles moços que querem mostrar serviço, andando de lá para cá entre papeis, conversas e sorrisos a torto e à direita. Uma encenação oportunista, eu penso. Eu e a dona Léa não conversávamos muito. Às vezes, apenas trocávamos um bom dia, um olá, uma boa tarde, naqueles encontros de corredor. Era uma senhora bondosa, sem queixas e afetação.

Agora, muitos anos depois, soube da morte da Dona Léa. E uma homenagem simples foi feita pela Prefeitura à sua destemida servidora. Eu já nem me lembrava muito dela. Mas, diante da notícia, veio à minha mente a sua figura simples, junto com uns versos da música Gente Humilde, do Vinícius de Moraes, do Garoto e do Chico Buarque: “Tem certos dias em que eu penso em minha gente/ e sinto assim todo o meu peito se apertar/ Porque parece que acontece de repente/ como um desejo de eu viver sem me notar/ (…) e eu que não creio/ peço a Deus por minha gente/ é gente humilde/ Que vontade de chorar”.

Relembre a canção, click e ouça:

Chico Buarque de Holanda – Gente Humilde