Que história é essa? A rua Gonçalves da Guia – parte II

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Sílvio Bernardes

Algum eventual leitor desse espaço talvez venha me contestar dizendo que a alameda em que situaram o Cine Rex, o Bar Azul – no mesmo lugar em que foi instalado o majestoso Edifício Benfica – e onde se encontram os bancos do Brasil e Mercantil, não faz parte da Rua Gonçalves da Guia, mas sim da Praça da Matriz. Tudo bem, mas, para mim é ali que começa esse logradouro público que tão presente se fez na minha infância. O Automóvel Clube – em cima – e o Restaurante Automóvel Clube – em baixo – são o início da Gonçalves da Guia e, como já escrevi noutras crônicas, o trecho em questão era o caminho para o alto (a zona boêmia). Os homens – jovens e experimentados rapazes da elite itaunense – se preparavam para irem à zona tomando umas (de leve) no Automóvel Clube ou no Bar Azul. Ou nos dois. Alguns jogavam um poquerzinho nos salões escondidos do Automóvel Clube ou no reservado do Bar Azul à guisa de ensaio para mais tarde mostrarem sua performance no carteado com a Lourdes do Cici, lá no alto da Coreia. Outros pegavam um cineminha no Rex – com a esposa, a namorada, os sogros – antes de se jogarem ao ambiente de luzes coloridas, fumaça e música (vá lá) brega e aos braços das moças que sorriam com bocas enormes de batons  escarlates.

No restaurante Automóvel Clube o prato mais famoso era o galeto do Zé da Ramira. Aliás o galeto do Zé da Ramira o acompanhou por outros bares e botequins após o fim do restaurante na parte inferior do clube – que deu lugar ao banco Bemge e, depois, ao Itaú. Gente moça (extraviada ou em grupos) ou famílias de domingo compareciam ao ambiente comandado pelo Zé da Ramira para apreciarem suas criações gastronômicas. 

O Bar Azul era do Nenem Drumond – que também exercia a função de delegado municipal. As atividades de atendimento tinham o reforço dos simpáticos Joaquim e Nina no balcão; e uma dupla de garçons nas mesas. Fora do ambiente boêmio que o caracterizou, o Bar Azul era o preferido da molecada de minha corriola por causa do picolé roliço, indecentemente grande e o bolo de laranja (inesquecível). Já falei que a minha primeira coca-cola foi no Bar Azul e que na ocasião, na vitrola, tocava um samba de um artista ainda jovem chamado de Benito Di Paula? O samba era “Vai ficar na Saudade”. Nesse dia, um sábado, quando eu cheguei em casa, depois de um dia inteiro engraxando sapatos, soube que o meu mano Marcinho havia comprado o disco de vinil (Long Play ou LP) daquele sambista massa. Pude ouvir mais tranquilamente – e repetidas vezes – aquela canção: “Você cortou o barato/ do meu amor/ Você mentiu, iludiu e me deixou por fora/ Você é culpada do meu samba entristecer…”.

O Bar Azul, somente, renderia inúmeras crônicas dessas minhas reminiscências. O lugar era um entra e sai de gente o dia todo, por conta, principalmente, dos pontos de embarque e desembarque de passageiros das empresas de ônibus Viação Itaúna, Teixeira e São Francisco – e outras mais –, a proximidade da praça da matriz e da praça da estação, o Cine Rex, a igreja e suas procissões inesquecíveis etc. Lembro-me do salão grande repleto de mesas, do reservado – para os encontros furtivos dos casais enamorados -, dos sanitários fedorentos, dos balcões repletos de coisas gostosas e do congelador do picolé roliço.

Do Bar Azul, minha memória me leva a dois episódios que aconteceram naquele salão tão conhecido do povo itaunense num passado já muito distante. O primeiro quem relatou foi meu amigo Peri Tupinambás, numa crônica na “Folha do Oeste” publicada há muitos anos. Ele escreveu, inspirado pelas narrativas do Pancrácio Fidélis, que certa feita – um domingo de manhã, quando o povo se dirigia à igreja da matriz para a missa das dez – estava o Tinho Pércope tirando uma pestana numa das mesas do Bar Azul quando um sujeito de maus bofes deu um tiro de revólver a esmo. O Tinho talvez despertou da soneca, mas caiu na hora ficando estirado no chão. Algum linguarudo que presenciara o episódio saiu dizendo esbaforido e suarento: “mataro o Tinho Pércope! Mataro o Tinho Pércope!”. Foi um alvoroço que alterou a tranquilidade da praça da matriz naquela manhã ensolarada. Algum tempo depois, o Tinho despertara do susto e pôde, ele mesmo, desmentir a infausta informação. O tiro não foi para ele. Passou longe da mesa em que ressonava impunemente.

Outra narrativa ouvi da escritora Maria Lúcia Mendes há pouco dias. O fato ocorreu, possivelmente, nos anos de 1940. Um homem se matara numa mesa do Bar Azul. Tomara guaraná com formicida numa tarde que talvez fosse azul. Em suas mãos sem vida encontraram um bilhete de despedida. O dono do bar teve a oportunidade de exercer sua outra função para tentar elucidar o ocorrido e “Folha do Oeste” certamente noticiara o fato.

(Continua na próxima edição)