Que história é essa? Aquelas histórias de guerra

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Sílvio Bernardes

Houve um tempo em que a gente ouvia muitas histórias de guerra. Sempre tristes. Guerras fratricidas, desumanas! Desnecessárias, que nos colocam na mais abjeta das condições de involução da raça. Naqueles tempos havia até uma expressão muito usada pela minha mãe Dona Luzia, quando algum dos seus rebentos atacava com uma fome canina alguma merenda ou mesmo o prato do almoço ou da janta. “Cê veio da guerra, menino? Nunca viu cumê, não?”, questionava aquela senhora com energia. Acho que era ela mesmo quem nos contava a história de um senhor que voltara da guerra – da Segunda Grande Guerra, eu penso – com problemas de cabeça. A meninada andava atrás do pobre homem zombando de sua infeliz situação. Alguns soltavam bombinhas para assustá-lo e ele caía no chão, e se arrastava numa coreografia dantesca. Mas a molecada inconsequente se divertia. As histórias de guerra não são nada agradáveis, mas precisam ser contadas para que os homens reflitam e busquem o entendimento pela via do diálogo, da diplomacia.

Ouvi muitas histórias de guerra de um velho amigo que por aqui passou. Era um húngaro de nome Mihály Oláh (Mirrai Olá, como todos os chamavam) e vivera nessa cidade, num abrigo dos vicentinos. Fora um combatente da guerra, exilado de sua Hungria por força das invasões, primeiro dos alemães e posteriormente dos russos. Antes de aportar no Brasil, em fins dos anos de 1940, o forasteiro rodopiou por vários países, especialmente como cozinheiro de navio. Mihály Oláh viveu em Itaúna na década de 1990 onde fez vários amigos, sobretudo por conta de suas histórias, de guerra e de paz. Morreu há alguns anos na cidade de Divinópolis, com mais de 100 anos.

Eu passava horas em sua companhia ouvindo as lembranças das aventuras do velho senhor da guerra – algumas delas relatadas nas páginas dos jornais onde eu enfiei as minhas narrativas de cronista chinfrim –,  as pelejas no front,  as fugas e, até mesmo, os momentos marcantes de sua incoercível alegria. Havia uma história que muito me emocionava sempre que eu a ouvia. Era da sua fuga do Exército Vermelho (os russos), quando teve que falsificar documentos e a identidade húngara. Mihály Oláh tivera que se passar por Oscar Zinner, um artista austríaco supostamente morto, numa viagem de trem comandada por russos. Durante a viagem, contava Mihály, ia se lembrando da vida do artista Zinner, tentando, desesperadamente, não vacilar quando a fiscalização o abordasse. Mas, aconteceu algo inesperado, um oficial russo o convida a jogar com ele uma partida de xadrez e ele passa toda a viagem desfrutando da companhia (e das mordomias) dos representantes do poder. Ao fim da viagem, já muito à vontade dando aperto ao enxadrista russo, constata que o oficial vermelho soubera desde os primeiros momentos do jogo que ele não era austríaco porcaria nenhuma, mas um fugitivo húngaro. Em pânico ouvira o oficial russo dar a dica: “davai, magyar” (“é a sua vez, húngaro”). Mas, a essa altura já se tornara simpático ao comandante dos soldados naquele trem.

O tempo em que por aqui viveu, Mihály foi um grande soldado do bom combate, como ensina o apóstolo Paulo de Tarso. Saía de porta em porta pedindo alimentos e agasalhos para distribuir entre outros pobres da Vila Vicentina. Quando conseguiu se aposentar, ganhando um salário mínimo por mês, dizia-se o homem mais rico do mundo.  “Eu não tinha nada, hoje tenho um salário mínimo todo mês. Sou ou não sou o homem mais rico do mundo?”, comemorava aquele senhor cheio de alegria.