A Dona Jesuína está desfilando com um relógio no braço esquerdo. Um relojão bonito, que brilha no escuro e, de frente para o sol, chega a ofuscar os nossos olhos. Ela já usa um anel de bala com pedra vermelha – no anular da mão direita. Agora, anda exibindo o relojão que ganhou de presente. Dizem as más línguas, que quem lhe presenteou foi um dos caras que era gamado nela – e que ela, também, gamou nele – e que teve que sair do asilo por causa de seu comportamento, digamos, um tanto atrevido para os padrões da boa moral da instituição. O rapaz, contam, gostava de umas piadas indecentes e de umas brincadeiras meio que despropositadas com as “meninas” mais salientes e chegara a experimentar certas intimidades até mesmo com as atendentes que se vestem de branco dos pés à cabeça. O homem, de nome Osvaldo (chamado por ela de Vadinho), era um sujeito esgrouviado, de uns setenta e poucos anos e com muita saúde. Era bem aparecido sim e, também, bastante exibido. Usava um bigodinho estilo Clark Gable e tinha uns olhos amendoados, da cor de ferrugem. Fumava cigarro de papel, com filtro, e chupava balas de hortelã. Tinha um bom hálito – a despeito do cigarro – e cheirava à Aqua Velva. Ficou menos de um mês no asilo; foi embora com a recomendação de cantar noutra freguesia. Deixou com a Dona Jesuína um lencinho bordado – que ela sacudiu com as mãos pequenas e enrugadas, com os olhos cheios d’água no dia da sua partida – e o relógio bonito da marca Mondaine (do Paraguai, dizem).
Assim que eu bati o olho no relojão, falei para uma Dona Jesuína tristonha, com um olhar pousado num horizonte distante: “que relógio mais bonito, minha senhora!”.
– Ganhei de um bonitão que foi embora daqui por causa da língua ferina desse povo, do ciúme doentio dessa gente despeitada, cheia de dor no cotovelo e muita malquerença. Esse povo daqui num presta, Silo! Ess num pode ver a gente alegre, de bem com a vida, vem correndo arrumá uma indaca, caçando chifre em cabeça de cavalo pra nos atrapaiá. Mas, mentira num prega, né Silo?
– Mandaram o homem de volta, então? Mas, como assim? Quem levou ele?
– Acho que uma irmã dele, a mesma que deixou ele aqui no mês passado. Enredaram coisas do arco da velha de mim com ele, no quarto, na porta da igreja, no jardim. Futricaram que a gente tava assim e assado, fazendo isso e aquilo. Tudo mentira. Vai à merda pr’esse povo! A pessoa sem sorte, Silo, cai de costa e ainda quebra o nariz.
– Então, não tem nada do que eles estão falando?
– Bosta nenhuma, Silo. Quem dera a metade do que inventaram. A única coisa demais que aconteceu é que a gente bebeu um litro de vinho doce, nos dias que ele chegou aqui. Eu não sei como ele conseguiu esconder essa garrafa. Ele trouxe aqui pro meu quarto e a gente bebeu o vinho tudinho. E a gente contou piada, cantou, riu, foi uma fuzueira danada! Eh dia bão, sô! O povo daí pegou a gente nessa bagunça e foi um deus-nos-acuda, passou um sabão nele e…
– E na senhora também?
– N’eu não. Mandei todo mundo queimar chão do meu quarto depois que ess levaram ele, bebo que nem um gambá.
– E o relógio?
– Ele deixou pra mim no dia que foi embora de vez. Eh trem danado, Silo!
– Mas, que relojão da ora, hein, Dona Jesuína? Fala pra mim, que horas são?
– Relógio bão taí, cê num é bobo! – E ela me estendeu na cara o cebolão, já que não sabia decifrar os movimentos dos ponteiros. Não tem, coitada, a competência de saber olhar as horas, mas não queria passar recibo dessa sua, digamos, fraqueza.