Que história é essa? Escurinho

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Sílvio Bernardes

Não faz muito tempo que eu descobri que o Escurinho, meu amigo de infância, desde os tempos imemoriais da Laje e das empreitadas na fábrica de muro do Zé do Eusébio, se chamava de verdade, de batismo e de pia, Genésio. Genésio do Carmo de Azevedo. Todos da minha corriola o conheciam como Escurinho. E foi assim sempre. O Escurinho chegava e abafava com aquele seu jeito, sua malemolência, sua ginga, meio malandro e bonito como um artista de cinema. E como cantou o sambista Geraldo Pereira, nosso Escurinho era também “um escuro direitinho” e que teve, por um tempo, “essa mania de brigão”, mas passou. Ele se ajeitou na vida. Era trabalhador do ramo da construção civil. “Bão de serviço” como ele só, não enjeitava trabalho e ralava o dia todo. À noite e nos fins de semana sambava nas horas dançantes por aí. Era visto em toda parte, como Pedro Malasartes. Dos dias de peleja do trabalho, Escurinho só fazia concessão no mês de agosto, quando aconteciam as festividades do Reinado de Nossa Senhora do Rosário. Era dançador da Guarda de Moçambique e se entregava de corpo e alma às danças – com suas gungas –, às batidas de tambor e à cantoria dos negros para a santa. Gostava demais de estar ali, dançando e cantando nos cortejos pela cidade e no Alto do Rosário. Amava ser visto, reconhecido e cumprimentado por todos nós, seus amigos. Nessas horas, caprichava no ritmo das gungas nos pés ou nas batidas das caixas. Aí, Escurinho, menino danado!

Um dia o Escurinho sumiu. Deixou as danças dos bailinhos de final de semana, os gingados, a malemolência e o jeito bacana de se divertir. Largou as festas do Reinado. Sumiu o moço como somem os que voam para outros ambientes e não deixam rastros. Casou-se e mudou-se, diziam. A mulher com quem o Escurinho se juntou em cerimônia restrita numa igreja evangélica conservadora não era conhecida de ninguém. Nem foi. As notícias que chegavam aos amigos mais próximos davam conta de que o Escurinho tornara-se outro homem, era do trabalho para casa e da casa para o trabalho. Ah, a exceção ficava por conta dos cultos da igreja, duas vezes por semana, que ele frequentava religiosamente ao lado da patroa e, depois, dos filhos também. Escurinho fora obrigado a largar o cigarro, a cachaça e, claro, as danças do Congado. A mulher jogara no lixo alguns resquícios dos tempos de Reinado: o bastão de capitão, o capacete de espelhinhos e a caixa de madeira e couro bom… As  gungas,  ele escondeu muito bem malocado, longe da vista da mulher impassível.

Nunca mais o Escurinho voltou às festividades. Não se sabe se chorava, se recordava nostálgico ou se indignava ante a proximidade do mês de agosto ao som das caixas e da cantoria das guardas – que certamente ele ouvia ao longe. Dizem que nos últimos tempos o Escurinho era um sujeito combalido. Perdera o gosto da vida por causa da distância das coisas que o animavam. Há pouco veio a notícia – não confirmada – de que o Escurinho ficara viúvo. A mulher, terrivelmente evangélica, morrera de repente. Em casa.

Os amigos, há muito afastados, não esconderam uma certa satisfação com a notícia e a expectativa de um possível retorno do Escurinho   às festividades do Reinado e – vá lá – ao restinho de boemia que ainda resta nesta cidade.