Sílvio Bernardes
Uma das pessoas mais emblemáticas que conheci foi minha mãe, Luzia Zenóbia de Jesus, a Dona Luzia, como ela própria fazia questão de dizer ao ser apresentara a alguém. Em geral ela dizia tudo o que pensava, às vezes sem medir as consequências, mas noutras, reflexiva, perdia-se num olhar silencioso e seus olhos pousavam um horizonte distante que parecia não fazer parte daquela paisagem, de paisagem alguma. Mulher simples, mas que carregava uma personalidade muito marcante e forte. Dura, às vezes, sobretudo na defesa de suas convicções e no apoio a seus filhos que, para ela, necessitavam de proteção, sempre. Era brava e era mansa, Alegre e triste. Falante e calada. Cantava – principalmente enquanto lavava roupas na bica d’água –, batia na gente (com muita ternura) e brigava com quem discordasse dela em assuntos mais prosaicos. Contava piadas, debochava de situações, as mais inusitadas, rezava o terço, fazia novenas e acreditava com muita fé na sua santinha, Senhora Aparecida. Nas festas de Nossa Senhora do Rosário, na igrejinha perto de casa, juntava-se com as senhoras beatas, como a Dona Juversina, Maria Viuvinha e Dona Raimunda, nos eventos que prenunciavam o Reinado, as novenas e cantigas religiosas: “A nós descei/ Divina luz/ A nós descei/ Divina luz…”. Não era letrada, mas entendia de tudo e conversava sobre política, futebol – amava o Cruzeiro Esporte Clube –, novelas, notícias do dia a dia (especialmente das policiais). Lia jornais e revistas. E livros católicos. Criara os filhos sem muito apoio dos outros. Foi pai e mãe em tempo integral. Buscava lenha na cabeça para cozinhar seu cumêzinho do dia a dia. Lavava roupa no rio. Cuidava de horta, de doenças cotidianas, de ajudar os mais necessitados – com banhos, comida e conversas. Chegara a trabalhar como servente de pedreiro na construção de nossa modesta casa na Cava do Rosário. Aprendera a ser resiliente quando ainda não se falava em resiliência e a ressignificar sua vida a cada queda que a peleja lhe acudia. Capinava quintal, subia em árvores e batia roupas que iam para o quarador. Fazia quarto de defuntos – mesmo de quem não conhecia muito – , cobrava dízimos dos vizinhos, fora legionária de Maria e confreira de São Vicente de Paulo e cabo eleitoral de políticos afins (os filhos, por exemplo). Gostava também de carnaval, de festa do reinado, de folias de reis, de jogos de futebol no “Zé Flávio”, de parque de diversões, de teatro, de queima do judas, de circo e, até, de rodeio na época da equipe do Zé Capitão, no campo da várzea, onde hoje é a rodoviária: “Cutuca, Quirino!!! Ô negro duro!!!”.
Sem nenhum luxo em casa, como uma televisão e um rádio (que só chegara algum tempo depois dos meninos crescidos), Dona Luzia sabia cantar as músicas da época e reproduzia com sua voz doce – olha aí a contradição – e irônica, as marchinhas do carnaval do passado, como “Abre Alas”, “Mamãe eu quero”, “Aurora”, “Cachaça”, “Me dá um dinheiro aí”, “Cabeleira do Zezé”, “Tem nego bebo aí” e “Pó de Mico”. Não bebia nadica de álcool, mas fumava com elegância e gosto, “Hollywood”, “Minister”, “Continental”, “Arizona”, “Derb”… Ainda me lembro as espirais de fumaça que saíam de sua boca enquanto conversava.
Aqui escrevendo sobre minha mãe, lembrei-me, por algum motivo, de um trecho da peça “O Homem do princípio ao fim” (1982), do jornalista Millôr Fernandes (1923-2012), em que ele aborda um texto do escritor Cornélio Penna (1896-1958), “Carta”. Encerro com Penna este opúsculo repleto de saudade: “Minha mãe era uma figura de constante e misteriosa doçura, sempre mergulhada em um sonho longínquo, como se toda ela estivesse envolvida em seu manto de viuvez de crepe suave, quase invisível, que não deixava distinguir-se bem os seus traços, os seus olhos distantes. Andava pelas salas de nossa casa, em silêncio, sentava-se em sua cadeira habitual sem que se ouvisse o ruído de seus passos, e, quando falava, era um só tom, sem que nunca a impaciência o alterasse. Sabíamos, todos, contado em segredo pelas outras senhoras, o rápido e doloroso drama que a tinha despedaçado. Tendo casado em Paris, seguira para ltabira do Mato Dentro e, depois de oito anos de felicidade, meu pai morrera subitamente. Desorientada, tentou refugiar-se junto de minha avô, que ficara em Honório Bicalho, e, na estação, soube que ela falecera na véspera. Quis, então, ir para junto da irmã e madrinha, em São Paulo, mas esta também morreu, no mesmo mês.., e assim se fechara sobre ela uma lousa inviolável de renúncia e de tristeza, que nós os filhos nunca pudemos vencer, durante tantos anos de sobrevivência. Quando fecho os olhos, ainda a vejo, a mesma de todo o tempo, e me lamento por que não a fiz sofrer sem reservas, por que não a fiz chorar todas as lágrimas da maternidade infeliz, por que não lhe dei socorro aos gritos e é só por isso que desejava guardar sua imagem muito pura, muito secreta, e tenho a impressão de traí-la, falando sobre ela!”.