Que história é essa? Hora de dormir

(Adaptação de uma crônica, com o mesmo título, publicada no livro “A companheira de Viagem”, 1965, Editora Sabiá. Uma simples homenagem do jornalista itaunense ao centenário de nascimento do escritor, cineasta, cronista e jornalista mineiro Fernando Sabino (1923-2004)

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Sílvio Bernardes

Ah, não! Por que não posso ficar mais um pouquinho no celular?

— Porque você tem de dormir.

— Por quê?

— Porque está na hora, ora essa.

— Hora essa?

— Ah, para com essas coisas, menina! Além do mais, estudos comprovam que muitas horas seguidas debruçado em tela de celular faz mal para a saúde, prejudica a coluna, causa problemas de vista, traz consequência para a saúde mental. E tem mais, nem sei o que você está vendo aí nesse Ismartifone…

— Não é Ismartifone, pai, é Aifone. Nada a ver.

— Ismartifone, aifone, telefone, gramofone, interfone, é tudo a mesma coisa.

— Que que cê tá falando? Que doideira é essa? Parece que bebe.

— Não é doideira nada. Melhor, esses aparelhos são tudo coisa de maluco mesmo. Mas, sem mudar de assunto. Não é hora de ficar vendo besteira no celular?

— Ah é, e tem hora para ver besteira? Qual é o melhor horário, papai? Que tipo de besteira eu posso ver?

— Que bobagem é essa? Ande, vá dormir que você tem colégio amanhã cedo.

— Todo dia eu tenho.

— Está bem, todo dia você tem. Agora desligue isso e vá dormir.

— Espera um pouquinho.

— Não espero não.

— Aposto que assim que eu for para a cama você vai pegar o seu Ismartifone e ficar no Feicibuqui até tardão… kkk, feicibuqui é coisa de velho.

— Fico vendo feicibuqui não, nem instagram, nem nada, pode ir sossegada. Vou ler um pouco aqui até vir o sono. Tem um livro novo do Fernando Sabino que eu não conhecia. Tô louco pra ler. Vamos, obedeça a seu pai.

— As outras meninas todas dormem tarde, só eu que durmo cedo.

— Não tenho nada ver com as crianças dos zoto. Tenho que ver com minha filha. Já para a cama.

— Também eu vou para a cama e não durmo, pronto. Fico acordada a noite toda.

— Não comece com coisa não, que eu perco a paciência.

— Pode perder.

— Deixe de ser malcriada.

— Você mesmo que me criou.

— O quê? Isso é maneira de falar com seu pai?

— Falo como quiser, pronto.

— Não fique respondendo não: cale essa boca.

— Não calo. A boca é minha.

— Olha que eu ponho de castigo…

— Pode pôr.

— E tiro esse celular de você por um mês… uma semana, você vai ver! Se der mais um pio, vai levar umas palmadas.

—  …

— Quem é que anda ensinando esses modos? Você está ficando é muito insolente.

— Ficando o quê?

— Atrevida, malcriada. Eu com sua idade já sabia obedecer. Quando é que eu teria coragem de responder a meu pai como você faz. Ele me descia o braço, não tinha conversa. Eu porque sou muito mole, você fica abusando… Quando ele falava está na hora de dormir, estava na hora de dormir.

— Naquele tempo não tinha celular, nem televisão tinha.

— Mas tinha outras coisas.

— Que outras coisas, conta?

— Ora, deixe de conversa. Vamos desligar esse negócio. Me dá aqui. Pronto, acabou-se. Agora é tratar de dormir.

— Chato.

— Tome, para você aprender. E amanhã fica de castigo, está ouvindo? Para aprender a ter respeito a seu pai.

—…

— E não adianta ficar aí chorando feito boba. Venha cá.

— Amanhã eu não vou ao colégio.

— Vai sim, senhorita. E não adianta ficar fazendo essa carinha, não pense que me comove. Anda, venha cá.

— Você me bateu…

— Bati porque você mereceu. Já acabou, pare de chorar. Foi de leve, não doeu nem nada. Peça perdão a seu pai e vá dormir.

—…

— Por que você é assim, minha filha? Só para me aborrecer. Sou tão bom para você, você não reconhece. Faço tudo que você me pede, os maiores sacrifícios. Todo dia trago para você uma coisa da rua. Trabalho o dia todo por sua causa mesmo, e quando chego em casa para descansar um pouco, você vem com essas coisas. Então é assim que se faz?

—…

— Então você não tem pena do seu pai? Vamos! Tome a bênção e vá dormir.

— Papai.

— Que é?

— Me desculpe.

— Está desculpada. Deus te abençoe. Agora vai.

— Por que não posso ficar mais um pouco no celular?