Sílvio Bernardes
O jovenzinho Henrique estava passeando pelo parque quando encontrou sobre um banco, à sombra de uma frondosa caesalpinia férrea, um livro. Sim, um livro, de capa dura, aliás, com uma bela capa. Era “Viagem ao Centro da Terra”, do escritor francês Júlio Verne. Um lindo livro ali, sozinho, naquela tarde de abril num parque ecológico já quase deserto. Henrique sentou-se no banco, à sombra da caesalpinia, ao lado daquela preciosidade. Quis tocá-lo. Melhor, quis abri-lo e ali mesmo começar a devorá-lo como já fizera com outros clássicos – e não clássicos – em sua solidão (sic) nos dias que se seguiram à partida de seu pai, aos choros escondidos de sua mãe e ao vazio da velha casa da Floresta (do bairro Floresta, se é que me entendem). Ficou por longos minutos olhando o livro com uma vontade doida de tomá-lo em suas mãos – e sair dali com ele, como a um animalzinho resgatado de um abandono cruel. Pego ou não pego, pensou. E, juro, até considerou aquela máxima que tenta justificar o imponderável ato de quem se apropria da coisa alheia em situações como essas: “achado não é roubado”. Pegou o livro e folheou-o – com carinho e cuidado. Era uma nova edição do clássico francês em boa tradução portuguesa. O livro cheirava a novo e, parece, não fora ainda lido. Olhou em volta e não viu viva alma. Colocou em sua mochila e ao caminhar alguns passos teve outra surpresa, um novo livro, dessa vez na amurada próxima de um pequeno monumento ecológico que trazia um passarinho num galho de árvore. Outro clássico: “Crime e Castigo”, do russo Dostoiévski, ricamente encadernado. Não, aí já é demais, disse em voz alta. Aliás, gritou. “Pô, véio, aí cê me quebra! O que tá acontecendo neste parque?”. Não pensou muito, pegou o russo e consolidou seu pequeno crime – sem castigo – de apropriar-se da coisa alheia. Desta vez disse, também alto e bom som: “achado não é roubado”. Pôs o clássico de Dostoiévski junto com o Júlio Verne na mochila e deu pressa de sair dali – não que o parque não lhe oferecesse motivos para continuar naquele ambiente, muito antes pelo contrário. Queria ir embora rapidinho e levar as duas prendas literárias para a sua casa. Adiante, num banco próximo de um quiosque, avistou outro livro, aliás, dois: “O Encontro Marcado”, de Fernando Sabino e “Sagarana”, de Guimarães Rosa. Fechou os olhos e se beliscou para confirmar que não estava sonhando. “Isso é uma pegadinha ou uma trilha literária? Uma espécie de veredas de clássicos?”. Até chegar ao portão de saída, sobre os bancos, junto aos bustos dos jardins e nas colunas das placas de informações, foi recolhendo livros esquecidos: Carlos Drummond de Andrade, Cervantes, Dante Alighieri, Gabriela Mistral, Cecília Meireles, Machado de Assis, Clarice Lispector, Umberto Eco, Garcia Márquez, Saramago, Eça de Queirós… Ora essa! Ora essa!
Deixou muitos para trás, mas ainda assim sua mochila não foi suficiente para carregar os escolhidos. Teve que fazer uma trouxa com seu moletom para malocar aquele colosso de livros. Pegou o busão ali próximo do parque e durante toda a viagem – que não era muito longa – foi pensando o que significava tudo isso. Quem fizera aquele abandono literário e qual era o propósito. Será que ele fora filmado? Estava sendo seguido? Não teve oportunidade de retornar ao parque nos dias que se seguiram. Somente depois de um mês pôde voltar ao lugar onde tivera a oportunidade de recolher tesouros riquíssimos em forma de livros. Não teve a mesma sorte. Por onde andou entre árvores, jardins, lagos, bancos, bichos e calçadas, nenhuma obra literária fora avistada, nem uma revista de gibi, nem um almanaque ordinário, nem um livreto de romance policial. Nada. Nenhum vestígio daquela tarde de abril repleta de sonhos e fantasias. Tudo permanecia igual como em qualquer parque ecológico, sem Júlio Verne, sem Dostoiévski, sem Sabino, sem Rosa, sem Drummond… sem uma leitura que valesse a pena.