Sílvio Bernardes
Conheço um homem, um old man, que anda pelas ruas da cidade carregando uma caixa de papelão. Usa um chinelo de borracha – que uma marca famosa tomou como legítimas sandálias – e suas roupas são sujas. Os pés, eu notei da última vez que o vi, são encardidos e os calcanhares rachados. Mas o que destaca nele é a indefectível caixa de papelão, que ele carrega nos ombros. Não é uma caixa pequena nem grande e, parece-me, não é pesada, já que ele a carrega com desenvoltura e agilidade. É apenas uma caixa de papelão. O velho senhor não conversa com as pessoas. Pelo menos eu nunca o vi a trocar um dedo de prosa com alguém. Não é um personagem estático, como o são as gentes que ficam nos pontos a espera do ônibus ou as moças que varrem vagarosamente as ruas. Ele é um sujeito caminhador. Um andarilho urbano. Um transeunte de nossas vias. E sempre com sua caixa de papelão.
Creio que como eu, as pessoas não sabem o que ele leva na caixa – se é que ele carrega alguma coisa naquela caixa de papelão. As crianças, talvez, podem imaginar que ele seja um homem doido, que pega crianças, que corta os pedaços e que põe na caixa para, em casa, fazer mingau ou sabão. Será que ele é um velho louco? Um senhor que perdeu as faculdades mentais? Um sujeito que tem o sistema meio nervoso? Mas ele parece boa gente. Nunca o vi sorrindo, mas também não demonstra uma cara ruim, de mau. Ninguém jamais há de falar que o homem da caixa de papelão é um sujeito de maus bofes.
Nos últimos dias tenho visto o homem da caixa de papelão em vários lugares, não ao mesmo tempo porque ao que tudo indica, ele não tem o dom da ubiquidade – ou tem? Encontrei-o no domingo passado, no início da noite, próximo do cemitério central – aliás, caminhava rumo ao portão de entrada do cemitério. Será que isso tem algo a ver? Como disse um personagem do Rubem Fonseca em “Agosto”: “aí é que está o busílis”. Talvez na caixa ele carregava flores para enfeitar alguma sepultura. Na segunda-feira, à tarde, o vi na praça da matriz. Ontem, o avistei, de longe, caminhando entre carros na avenida Getúlio Vargas. Deram-me notícias do homem da caixa de papelão à porta da prefeitura. Alguém o viu ainda há pouco próximo da rodoviária. A caixa de papelão estava com ele – sobre seus ombros magros – , só não sei dizer se era a mesma caixa. Vou começar a reparar se o homem carrega sempre a mesma caixa.
O que tem de misterioso no homem da caixa de papelão? Algum amigo escritor vai me dizer que não existe mistério nenhum, mas que há muita poesia nessa história. Os psicólogos podem querer analisá-lo à luz do entendimento do mestre Jung – será que ele faz tratamento no CAPS? Os filósofos haverão de pontuar: existe mesmo o homem da caixa de papelão? E se tudo não passar de imaginação ou, pior, do engano de nossos sentidos? Existirmos, a que será que se destina?
Só sei que essa crônica me trouxe à memória o conto “O homem da cabeça de papelão”, do escritor carioca João do Rio (1881-1921); porém, acredito que o Antenor desse conto em nada se parece com o old man que passeia pela minha cidade, que agora se presta ao papel de o ‘homem da caixa de papelão’ e que comparece involuntariamente (será) nessa minha narrativa.