Que história é essa? O homem mais feio de um concurso na Vila Mozart

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Sílvio Bernardes

O Picum da Tereza do Zé Rola foi, no passado, considerado o homem mais feio da cidade. Pelo menos foi o que um concurso promovido pelo parque de diversões do Moleza apurou depois de umas duas semanas de votação no próprio parque e nos botecos da Vila Mozart. Já faz muito tempo isso e eu não sei porque vim desenterrar essa história, perdida na memória de quantos dela conheceram, como a corriola de moleques da minha infância. A gente andava sempre por ali, pela Vila Mozart, nos parques de diversão, nas aulas assistidas (e cabuladas) do Colégio Polivalente, nos passeios matinais na fazenda do Zé Herculano – já bem próximo do Morro do Engenho –, nas barraquinhas da igreja, na queima do Judas no Sábado de Aleluia, nas brincadeiras pelas ruas descalças, conhecidas por números desde a famosa Rua 3 até a não menos famosa Rua 15. O pobre Picum era, como diziam, um cachaceiro, useiro e vezeiro de todos os botequins da Vila Mozart. Morava perto da Filtro, num barracão de meia-água. Era feio mesmo o moço, mas de uma feiura branda, singela, sem provocação. Não despertava medo nas pessoas bonitas e, talvez, nem curiosidade, tipo assim: “por que cê é tão fei, fio?”. “Feiúra paga imposto, véi?”. “É bão ser feio?”.  Talvez o Picum nem tivesse consciência de que era tão feio, já que vivia acompanhado de outros tipos, também feios, seus colegas de birita. Esse povo feio bebia cachaça o dia todo e uma parte da noite também; e comia salame, linguiça maria-rosa, tomate, pepino, chouriço, torremo com farinha e, até, limão, à guisa de tira-gosto. Quando chupavam limão, aí é que coisa ficava feia mesmo. E nessas horas tinha sempre um engraçadinho, das vendas, dos botecos, do povo que passava por eles no seu “escritório”, perto da caixa d’água, denominado de “Pau da Preguiça”, que fazia uma piadinha boba: “cês é feio assim mesmo ou tá chupando limão?”. Mas o Picum sempre rebatia essa gracinhas: “Cê acha que é bonito ser feio? Exprementa pro cê vê o que é bão pra tosse!”. E todo mundo ria – mesmo banguela, mesmo sem graça, mesmo com pouca cachaça – e todo mundo bebia e o tempo escorria preguiçoso naquelas tardes compridas na Vila Mozart dos meus tempos de menino.

E o Picum foi eleito no concurso de homem mais feio da cidade. Um exagero, já que outros bairros não entraram na disputa, sequer foram convidados a fazê-lo.  Ali nos arredores da Praça da Matriz, mesmo, tinha uma porção de gente que dava bem pra competir de igual pra igual com o Picum. Era um povinho tão feio quanto, embora gente de elite, cheio da fama e com pedigree. Mas não teve essa disputa e o Picum venceu o certame no seu pequeno núcleo de abrangência. O homem ficou tão contente com a distinção que parecia ter ganho por ser o mais bonito, o mais inteligente, o mais namorador, o mais cheiroso, o mais esperto. O dono do parque de diversões presenteou o vencedor com uma garrafa de vinho margoso, do Sul; um quilo de linguiça maria-rosa, legítima; duas garrafas de Velho Barreiro e uma faixa feita de papel crepom. Os prêmios ele consumiu por ali mesmo, no seu escritório, no Pau da Preguiça, junto com sua turma do funil. Todos adoram aquela presepada e a premiação, é claro. Menos a faixa de papel crepom, que o Picum acabou perdendo naquela noite memorável a caminho de sua casa.

É certo que depois disso o rapaz andava orgulhoso pelas ruas do bairro, cheio de pompa, e há quem garanta que por algum tempo a venda do Custódio ofertou-lhe graciosamente uma ou duas cangibrinas, com direito a uma taia de salame. Mas, infelizmente o Picum não gastou muito a concessão do   vendeiro Custódio. Partiu dessa pra melhor numa tarde de domingo, depois de umas e outras no Pau da Preguiça. Contam que chovia canivete. Um dia triste a morte do Picum da Tereza do Zé Rola, o homem mais feio da Vila Mozart.