Sílvio Bernardes
“Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar
Por causa disso a minha gente lá de casa começou a rezar
E até disseram que o sol ia nascer antes da madrugada
Por causa disso nessa noite lá no morro não se fez batucada …” (ASSIS VALENTE/ NOEL ROSA In “O mundo não se acabou” (1938)
O mundo vai acabar. Se não for esse ano, será no próximo, até ali meados de junho, julho. Esta é a fala de uma mulher na fila do supermercado, isturdia. Ela não falou comigo, mas com uma vizinha da fila. Não sei se as duas se conheciam antes dessa conversa. As duas eram assim, meio velhas, sérias e simples, mas firmes em suas convicções, como convém às mulheres velhas e sérias. Diziam as senhoras que o mundo vai acabar de acordo com o relato de um repórter da televisão de grande credibilidade. As guerras que aí estão são apenas um ensaio, um aperitivo, para o fim do mundo que se avizinha. E pelo menos uma das mulheres acreditou piamente no vaticínio do homem da televisão – será mesmo que ele falou isso? E ela nem estava com medo, parecia muito curiosa para saber como iria acontecer o final dos tempos. No mesmo supermercado, noutra ocasião, uma jovem senhora do caixa ouvindo a conversa do cliente sobre o temporal que caiu na cidade na noite anterior, fez um comentário descontraído: “Pra mim o mundo estava acabando com aquele dilúvio”, afirmou a empregada do supermercado. “Fiquei lá em casa esperando o Noé ir me resgatar: Vem, vaca, que o mundo está acabando!”, disse a moça divertida para o cliente que não se aguentava de tanto rir. Lembrei-me de uma crônica da escritora Iracema Fernandes de Souza, publicada no livro “Itaúna através dos tempos”, em que ela relata a passagem do século XIX para o XX e o medo das pessoas que aquele dia seria mesmo o fim dos tempos. No dia 31 de dezembro de 1889 houve uma grande tempestade em Itaúna e as pessoas, apavoradas, correram para a Igreja da Matriz “para aguardarem o fim do mundo na casa de Deus” e, quem sabe, irem direto para o céu. Ali ficaram rezando e cantando baixinho cantigas de missas enquanto o temporal caía com vontade, com trovões, raios e muita água. Muitos adormeceram nos bancos da igreja, na sacristia, no confessionário – até no altar de Senhora Sant’Ana – e quando acordaram a chuvarada havia passado, o ano de 1900 irrompera no horizonte trazendo um novo século, um sol bonito e a perspectiva de tempos melhores – mal sabiam eles que menos de 50 anos depois aconteceriam duas guerras mundiais com o assassinato de milhões de pessoas e a destruição de inúmeras nações. Mas, pelo menos naquele momento, na passagem do ano 1889-1900, nada de fim do mundo. Todos voltaram para suas casas, sãos e salvos. E felizes. Como diria minha mãe: “entre mortos e feridos todos se salvaram”.
Noutros tempos também houve muita gente que prenunciou o fim do mundo; em 1999, por exemplo. Para muita gente era batata, batatíssima, o presságio conhecido: “de mil passará, em dois mil não chegará”. Mas chegamos, passamos de 2000 há mais de 20 anos. O fim do mundo ainda não foi dessa vez. Mas, não percamos a esperança, um dia vai. Talvez as duas mulheres do supermercado tenham razão.
Mas há quem afirme categoricamente que o mundo já acabou há muito tempo, desde quando as famílias deixaram de se reunir na sala de estar, na mesa de jantar ou no alpendre para conversar. Ou, quando, num dia, as crianças deixaram as brincadeiras das ruas para sempre. O fim dos tempos coincide com o desaparecimento das fichas de telefone, dos refrigerantes Grapette e Crush, dos desenhos animados na televisão, das fantasias dos meninos nas histórias de assombração, das peladas nos campos de várzea, das invasões inconsequentes dos moleques descalços nos quintais alheios repletos de frutas maduras. O mundo acabou com o fim dos botões vertical e horizontal da TV, com o sumiço da Monark pneu balão, da Rural Willys e da camisa volta ao mundo.
É, como diz o escritor mineiro Alberto Villas em seu livro “O mundo acabou!” (Editora Globo, 2006): “Corra! O mundo está acabando!”.