Que história é essa? O pequeno engraxate no meio dos grã finos na festa de Itaúna

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Eu era um menino muito pequeno nessa época – em idade e tamanho – e cuidava de ajudar o “seu” Joca Bernardo no trato da ferração de cavalos. Nos fins de semana seguia para o largo da matriz com a minha caixinha de engraxate procurando alguma bota, botina e até sapato de passeio para dar um lustro e ganhar unstrocados. Morava ali para os lados da Laje, quase vizinho da capela de Sant’Ana, onde no mês de agosto o povo preto dançava, cantava e tocava para os santos de sua devoção. Era tudo uma beleza. Eu zanzava por essas ruas poeirentas do arraial de Sant’Ana do São João Acima o dia todo, fazendo um servicinho aqui, um servicinho ali, que ajudava nos modos de cumê do meu povo. A mãe e o pai cuidavam daquela filharada com uma peleja constante na labuta do dia a dia, na lavação de roupa, no batente da casa e no cabo da enxada, pra aqui e pra ali, como Deus é servido.

Neste dia, especialmente, eu tava ali pelo largo da matriz logo cedinho quando vi aquela movimentação de gente, que chegava a cavalo, de carro de boi, a pé. Gente bonita, gente feia, um povo bem vestido e também mal vestido. Uma grã-finagem que fazia gosto. Havia no ar um cheiro de perfume, de cigarro de palha, de cachimbo, de fumo. Um cheiro de gente, de bosta de boi, de mato e de flores também. Uma risaiada estrepitosa e uma falação animada tomavam conta do lugar. Eu não sabia mas aquela era a festa da criação da Vila de Itaúna. Só depois é que me dei conta de que estávamos no dia 2 de janeiro, um dia depois do início do novo ano, 1902. Aquele encontro festivo e solene era a instalação do município, criado em setembro do ano anterior, como falou um homem muito distinto, que eu vim saber depois, ser o chefão de todos eles, o mandachuva deste lugar. Era o médico, bondoso e alegre, doutor Augusto Gonçalves de Souza Moreira. Ele estava ao lado da esposa e de outros homens e mulheres da turma dos bem vestidos – e cheirosos. Os grã-finos. Um deles, de batina limpa e organizada, gordo que nem um major e risonho que nem um coronel rico, era o padre Antônio Maximiano de Campos.  A partir de então, eu perdi o expediente, não quis saber mais de caçar sapatos para engraxar. Queria era ver aquele povo chegando e festejando como num cortejo de santo, uma procissão de louvor à padroeira. Era uma grande festa e, parece, que a vila inteira veio tomar parte. O largo da matriz fervilhava de gente que chegava de todos os lugares – até os cachorros e outros bichos (além dos cavalos e bois dos carros) davam o ar de sua graça. Tinha bandas de música e foguetes – que espantavam os cachorros e assustavam os outros bichos. O cortejo de gente desfilou pelo largo da Matriz: a banda de música de Emílio de Melo, seguida de um colosso de gente muito alinhada nas vestimentas, adereços e salamaleques, um grupo de senhoritas, vestidas de branco e ornadas com as cores nacionais, representando Itaúna e os seus distritos:  Conquista, Itatiaiuçu, Cajuru e Serra Azul.

Junto a estas senhoritas foram colocadas as pessoas ilustres que se achavam presentes e membros da nova câmera – ou seria câmara? Fechava o cortejo a banda de música do coronel Josias Machado que, combinada com a de Emílio de Melo, executava bonitos dobrados ao mesmo tempo em que espocavam os foguetes – e faziam os cachorros saírem esbaforidos.

Abraços, cumprimentos, vozes e risos largos denotavam uma alegria há muito reprimida. Dentro do prédio, a tal câmara, naquela travessa do cemitério, bem em frente ao largo da matriz, onde depois chamou-se Travessa Dois de Janeiro, havia mesas de doces e bebidas e eu, que não bobo, aproveitei. Tirei a barriga da miséria. Lavei a égua. Ninguém ligava para aquele menino mal vestido e descalço no meio daquele enxame de gente bacana, comendo quem nem um esfomeado. Um e outro dos grã-finos até que notavam aquele cabeçudinho “inocente” ali no meio de pernas, vestidos e ternos, festejando o nascimento de Itaúna. Por muitas vezes recebera, até, um afago na cabeça mui delicadamente – ou não?

Enquanto os adultos se abraçavam e sorriam despreocupados – e as crianças brincavam, alheias à importância daquela festa e à opulência das mesas – eu tratei de pegar umas boas quitandas e malocar na minha caixinha de engraxate.

Seria uma festa na minha casinha pobre logo mais. Nós, pé rapados, sem eira nem beira, também haveríamos de celebrar como gente grande o dia 2 de janeiro e a instalação do novo município, a nossa cidade de Itaúna.