CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O ritual que irei descrever abaixo foi resultado de minha observação atenta. Mesmo assim, pode haver alguma discrepância devia a percepção de alguém de fora do movimento do Reinado, ou do Congado. Embora eu já acompanho este festeja por mais de 20 anos, foi a primeira vez que tive a oportunidade de acompanhar este ritual. Por isso, caso haja alguma discrepância peço que anote e me comunique para que possamos corrigir. No entanto, busquei fazer a descrição o mais fiel possível do que vi e do que presenciei.
CONTEXTO
Tem rituais que a gente só tem a oportunidade de ver uma única vez, ou pouquíssimas vezes na vida. Embora tenha pessoas que em toda sua existência não tiveram a oportunidade de conhecer alguns rituais, diferente, significativos e muito bonitos. Hoje, eu tive esta oportunidade de presenciar um desses rituais. Único em sua forma, e simples, mas pleno de símbolos e de significado. Hoje fui a um velório de uma Rainha do Congado, ou como é chamado aqui em minha cidade, uma rainha do Reinado. Pois bem. D. Maria da Conceição de Jesus Basílio, com 98 anos de idade faleceu. Ela era Rainha Perpétua de Santa Ifigênia e por muitos anos comandou a festa do Reinado em nossa cidade. Sua residência era a sede de três ternos ou “guardas” de congado: Uma guarda de congo, Um Candombe e uma Guarda de Vilão. Assim sua casa, simples era um “quartel” do nosso reinado. E ela, como Rainha Perpetua era quem comandava a festa. Em todo dia 01 de agosto era sua obrigação levantar a Bandeira de Santa Ifigênia em seu terreiro, e dar o aviso que aquele ano teria festa. E aí a festa se estendia por 15 dias consecutivos, como muita dança, comida, bandeiras, foguetes e muita música e dança aos sons dos tambores, caixas, reco-recos, gungas e patangomes.
Pois bem, como todo ciclo de vida acaba , a Rainha D. Sãozinha também chegou ao fim de sua trajetória. Faleceu. Então fomos ao velório. E para começar, não foi um velório comum. Foi um velório digno de uma Rainha. Cada capitão de guarda que chegasse ao velório fazia sua saudação a rainha falecida com muita oração e muita cantiga. As caixas silenciaram, os reco-recos, os tambores, não tocaram naquele dia. O povo, visivelmente abalado pela preciosa perda, mas traziam em seus cânticos a certeza de que a Rainha já estava no céu com a Senhora do Rosário.
O RITUAL
Passou-se as horas e duas horas antes do sepultamento, o capitão-mor, acompanhado por mais dois capitães da irmandade da qual pertencia aquela Rainha, começa os preparativos para o “descoroamento” da Rainha falecida. Então coloca um
1 Professor de História, Filosofia e Sociologia. Membro Fundador da Academia Itaunense de Letras. Pesquisador da cultura popular do Reinado em Itaúna.
pouco acima de sua cabeça a sua coroa, sobre seu corpo estende o manto e sobre suas mãos coloca-se o cetro, com a insígnia de Rainha. Então todos se aproximam. Os capitães de Guarda presentes, ficam de um lado e do outro do caixão, e nos pés do caixão ficam as mulheres filhas e netas da Rainha ali presentes.
O Capitão-mor, Senhor Mário, no exercício de sua função preside a cerimônia e inicia o rito de “descoroamento”. Reza em voz baixa, praticamente inaudível. Esta forma de rezar parecia ser proposital, pois somente os capitães que lhe estavam mais próximos dele poderia ouvir as palavras de suas orações. Depois puxavam um canto, e todos repetiam cantando as palavras puxadas pelo Capitão-mor. O canto tinha a seguinte letra:
“Virgem do Rosário
Ela é a nossa mãe
Clamamos por ela
Em nossas orações”
Ao terminar o campo pela assembleia, o Capitão-mor voltava a fazer sua oração, e puxava o canto novamente. Este pequeno ritual introdutório se repetiu por sete vezes. No final das sete vezes, o Capitão-mor dava “Viva a nossa Senhora do Rosário”, “Viva ao Rosário de Maria”.
Em seguida, já acompanhado por um tambor, com toque mais fúnebre, puxava um novo canto com um verso simples que dizia assim:
“Virgem Maria, Mãe do Céu
Esta Rainha está lá no céu,
Pois a Glória seja ao Pai
Oh! Lá no céu, oh! Pai Eterno”
Isso cantado duas vezes pelo capitão-mor e repetido duas vezes pela assembleia. O ritual deste verso se repetiu por três vezes.
Ao término desta segunda parte, o Capitão-mor, puxou novo canto, dando início ao ritual de “descoroamento” propriamente dito.
E o canto era
Descoroai, Descoroai, Senhor
Descoroai, essa nossa Rainha
Esta coroa é sagrada
Esta coroa é divina.
O que era repetido pela assembleia em resposta ao canto do Capitão-mor. Isso se repetida por três vezes.
Em seguida, o capitão-mor, com a ajuda de outro capitão, com seus bastões, erguia a coroa, sem nela tocar, usando somente os bastões, cantavam:
“Entregai, Senhor
Entregai, Senhor
Estregai esta coroa
Ela é de Nossa Senhora”
E repetia mais também por três vezes, sempre com a resposta do campo pela assembleia. Enquanto se cantava a coroa erguida pelos bastões do capitão percorria todo o corpo da rainha até chegar aos seus pés e era entregue pelos bastões as filhas e netas da Rainha falecida.
Em seguida se repetia o ritual da coroa, só que desta vez, se erguia o manto, com a ajuda dos bastões dos demais capitães presentes, sempre tendo o cuidado de não se tocar com as mãos o manto da rainha. Erguia-se o manto, e novamente levava-o até aos pés da rainha falecida onde fazia a entrega do mesmo as filhas e netas da Rainha falecida.
Para a retirada do manto se cantava e era repetido pela assembleia o seguinte canto:
Entregai, Senhor
Entregai, Senhor
Entregai este manto
Ele é de Nossa Senhora.
O mesmo acontecia com o cetro da rainha, que era acompanhado do mesmo canto com a seguinte letra:
Entregai, Senhor
Entregai, Senhor
Entregai esta insígnia
Ele é de Nossa Senhora.
Ao terminar o ritual, o Capitão-mor puxava então o canto de encerramento, também por três vezes repetido, com os seguintes dizeres:
Descoroou, Descoroou, Senhor
Descoroou esta nossa Rainha
Ela foi descoroada com a coroa Divina
E o Capitão-mor deu viva a nossa Senhora do Rosário, e ao Rosário de Maria. E termina aqui o Ritual de Descoroamento.
DESFECHO
Mas o velório segue, e os capitães nem a assembleia se mexe. Cada capitão presente puxa um canto em honra a rainha descoroada, destacando sua missão cumprida e seus ensinamentos, bem como a louvores a Nossa Senhora do Rosário. e em seguida cada Capitão presente puxava um canto de saudação a rainha descoroada, e o canto era acompanhada pela assembleia. E por mais um dez a quinze minutos os cânticos continuaram, sempre com muita participação da assembleia. Em seguida seguiu ao cortejo até a capela do Rosário e, em seguida até o cemitério central. Tanto na capela do Rosário, quanto no Cemitério, a assembleia pode manifestar engrandecendo a missão de D. Sãozinha, e ainda tivemos mais cantos, e mais louvores tanto a Rainha descoroada, quanto a Nossa Senhora do Rosário.
D. Sãozinha cumpriu sua missão e deixou a coroa para suas filhas e netas que deverão decidir qual delas será coroada como Rainha Perpétua de Santa Ifigênia e se responsabilizará para dar continuidade a Festa de Nossa Senhora do Rosário, portanto, como dizem por aqui, Festa do Reinado de Nossa Senhora.
E para encerrar é preciso destacar nestas linhas finais, a Capela Oficial de Nossa Senhora do Rosário não estava aberta para receber o cortejo desta Rainha. Ele foi para a capela da Irmandade das Sete Guardas, construída a revelia quando o bispo D. Cabral, na década de 1940, proibiu os negros de entrarem em sua igreja. Mas nem por isso tirou o brilho e a dignidade deste povo que celebrou com a vida sua devoção a Nossa Senhora do Rosário.
Viva, Nossa Senhora do Rosário! Viva!
Viva, o Rosário de Maria! Viva!