Sete perguntas para o professor Alisson Diego Batista Moraes, ex-diretor do SAAE

“Ainda há muito a fazer, mas o SAAE possui um histórico estimável e Itaúna está sim na vanguarda em matéria de saneamento”

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Alisson Diego

O professor da USP, Vladimir Safatle, fez a seguinte dedicatória para o professor Álisson Diego Batista Moraes, que está lançando o livro “Neoliberalismo Autoritário: a racionalidade que gerou o bolsonarismo”, fruto de sua dissertação de mestrado, e, para ele, resume bem o que ele é: “Ao Alisson Diego, que tem um pé na teoria, um pé na prática e a cabeça no lugar certo”. Sobre o seu pé acadêmico-teórico: é advogado pela Universidade de Itaúna, gestor público, filósofo, pela UFMG, especialista em Gestão Empresarial, pela Fundação Getúlio Vargas, mestre em Ciências Sociais, pela PUC e, atualmente, faz o doutorado em Ética e Filosofia Política na Universidade Federal de Ouro Preto, UFOP. Além disso, é professor dos cursos de pós-graduação da PUC-Minas – IEC.

Já este é o seu o “pé na prática” como profissional e gestor público: foi vereador em Itaguara aos 19 anos de idade, prefeito eleito e reeleito de Itaguara (entre 2009 e 2016), Diretor da AMM (Associação Mineira de Municípios) e vice-presidente da Granbel (Associação dos Municípios da Grande BH), Diretor do SAAE e secretário de Planejamento e Governo de Itaúna entre 2017 e 2019; Diretor da Assemae (Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento) de 2017 a 2019. Secretário de Planejamento, Assessor de Projetos Estratégicos e Chefe de Gabinete da Prefeitura de Itabira entre 2021 e 2022. Atualmente, é secretário de Fazenda de Nova Lima, desde julho de 2022. Também teve um escritório de advocacia, mas atividades foram suspensas em virtude do impedimento pelo cargo que ocupa.

Em razão do lançamento do seu livro “Neoliberalismo Autoritário: a racionalidade que gerou o bolsonarismo”, o professor Álisson Diego é o convidado do Jornal S’PASSO para responder as Sete Perguntas dessa edição.

  1. Qual é sua ligação com Itaúna, para além de ter sido membro do governo do prefeito Neider e de ter estudado na Universidade de Itaúna?

Tenho ligações muito fortes e históricas com Itaúna, muitos amigos construídos ao longo de anos, além de vigorosos vínculos familiares. Para se ter uma ideia, a Dona Dorica, que foi esposa do Coronel Arthur Contagem Vilaça, admirada em Itaúna e em Itaguara como benfeitora de nossa região, era irmã de meu tetravô, o Antônio Luiz, portanto era minha “tia-tetravó”. O Célio Soares Nogueira e o Milton Penido, que foram prefeitos da cidade, eram também parentes meus. Carlindo e Elói, irmãos de meu trisavô, moraram e constituíram as suas famílias em Itaúna. Ah, havia também a Dona Artumira, mãe da Dona Ivete, casada com o Dr. Guaracy, que possuía parentesco comigo. Há centenas de descendentes desses meus familiares em Itaúna. Todos parentes meus. Há diversos outros familiares, mas se eu disser aqui a lista fica muito extensa. Essas raízes histórico-familiares são muito significativas para mim. Dizem respeito à minha ancestralidade. Eu adorava conversar com o Doutor Guaracy sobre essas raízes. Ele tinha belíssimas histórias. Uma pena que não anotei todas e muitas se perderam.

Mas como ressaltado na sua própria pergunta, academicamente foi na Universidade de Itaúna onde cursei Direito e comecei a minha trajetória intelectual. Profissionalmente, a passagem pela prefeitura itaunense entre 2017 e 2019 também foi muito importante para a minha formação e para as reflexões que faço até hoje sobre a política, a sociedade brasileira e a gestão pública.

Então, posso dizer, com absoluta segurança, que Itaúna possui uma importância muito grande e está presente em vários momentos e perspectivas de minha vida.

  • O SAAE, autarquia que você dirigiu, é hoje uma das instituições mais importantes da cidade e uma das mais questionadas por causa da política de saneamento, do marco regulatório que preconiza 100% de atendimento à população e das cobranças por um serviço mais próximo da população. Conhecendo bem o SAAE Itaúna, esta autarquia está realmente na vanguarda do serviço público? O que lhe falta para que ela cumpra efetivamente com o seu papel?

O SAAE é um grande patrimônio do povo itaunense. Itaúna é privilegiada por ter o SAAE com a estrutura e a grandeza que possui. É uma autarquia que conta com um corpo técnico qualificado, com estruturas muito acima da média e com uma capacidade respeitável de investimentos. Quando assumimos o SAAE em 2017, a autarquia passava por um momento complicado de desestruturação e desvio de sua função mais importante: cuidar efetivamente do saneamento em seus pilares definidos pela legislação, sobretudo água, esgoto e resíduos (pode-se acrescentar a drenagem como quarto pilar, mas muitas autarquias não prestam este serviço, embora esteja definido em lei). O SAAE é para isso e ponto final. Não é para fazer praça, ajudar a prefeitura a fazer asfaltamentos etc. Isso é o básico de se entender. Quando deixamos a gestão do SAAE, a autarquia passou a ser superavitária e a cumprir com o seu propósito, a sua missão: fazer saneamento de qualidade. Samuel, que me sucedeu, foi também muito importante para essa estruturação realizada; e depois o Arley que também seguiu o caminho e realizou um grande trabalho.

Tenho muito orgulho do que fizemos no SAAE de Itaúna. Ainda há muito a fazer, mas o SAAE possui um histórico estimável e Itaúna está sim na vanguarda em matéria de saneamento. O SAAE não é apenas orgulho para os itaunenses, mas para o Brasil. Mas, claro, que pode e deve melhorar. Como gestor, jamais abro mão do conceito de “melhoria contínua”. Uma sugestão para aperfeiçoar a gestão da autarquia hoje? Investir pesadamente na eficientização dos processos internos, na governança estratégica e no compliance da autarquia – isso dará ainda mais protagonismo ao SAAE e garantirá sustentabilidade financeira e organizacional para o futuro, resultando em maior reconhecimento por parte da população.

  • Falando de sua dissertação de mestrado e da publicação do seu livro, lançado essa semana em Belo Horizonte, conte um pouco sobre sua abordagem e quando foi que ela se tornou objeto de estudo acadêmico.

Há alguns anos tenho observado e estudado a ascensão da extrema-direita no Brasil. Desde quando era prefeito, em 2013, com a irrupção das manifestações que tomaram conta da nação em junho daquele ano, comecei a ficar muito instigado a refletir sobre o que estávamos vivendo. Não era algo que se poderia considerar “normal”. Anos depois, decidi estudar ainda mais profundamente o papel da cultura política na formatação da sociedade e do estado brasileiros. A ideia inicial era tecer uma discussão da obra “As ideias fora do lugar” do sociólogo Roberto Schwarz e explorar a tradição iliberal do Brasil. Mas com o tempo, fui percebendo que a cultura política por si mesma não seria capaz de explicar a ascensão da extrema-direita nem no Brasil, nem no mundo. Ou seja, não era apenas porque o Brasil havia sido colonizado por Portugal e forjado por uma estrutura hierárquica rígida que persistia na atualidade um autoritarismo arraigado no tecido social e nas estruturas de poder. Havia outros fatores a serem considerados nesta quadra da história, neste primeiro quarto do século XXI. Dentre esses fatores, o principal deles, a meu ver, trata-se do neoliberalismo, que é mais que um sistema econômico, mas também possui uma dimensão política, social, cultural e até metafísica. Fui à fundo nessas temáticas e teci a correlação entre a tríade amalgâmica que sustenta a obra: neoliberalismo, autoritarismo e bolsonarismo.

  • As raízes do neoliberalismo no Brasil, tratadas em sua obra, estão num mesmo emaranhado do autoritarismo brasileiro? As mesmas fontes que alimentam um, dessedenta a outra?

O autoritarismo brasileiro é anterior ao neoliberalismo autoritário. Isso precisa ficar claro. A nossa estrutura social é marcadamente autoritária e violenta desde a sua gênese. O ponto central do livro é este: não se pode tratar da temática autoritária, hoje, sem mencionarmos as estruturas neoliberais. Ou seja, não dá para voltar ao século XVIII para explicar a totalidade da dimensão autoritária em nossos dias. Eu não ignoro o aspecto histórico, mas não é possível dizer que a cultura política e a intrincada herança colonial-escravagista são as únicas razões para a persistência autoritária na sociedade brasileira. Há, notadamente, uma estrutura histórica tanto da sociedade quanto do Estado brasileiro que impede o avanço das demandas sociais por maior participação política, por acesso a bens materiais, por equidade, por democratização, mas há um componente atual fundamental a ser considerado: a ambiência neoliberal.

O bolsonarismo, por exemplo, é um fenômeno que se relaciona muito mais com o neoliberalismo do que com a tradição autoritária brasileira. Posso dizer, de todo modo, que o neoliberalismo autoritário (que para mim é até uma expressão pleonástica porque o neoliberalismo é essencialmente antidemocrático) encontrou um terreno muito fértil em uma sociedade estruturalmente autoritária e violenta como a brasileira. Isso está na esteira do que defendem a Marilena Chaui, o Jessé Sousa, o Adam Przeworski, a Verónica Gago, dentre outros pensadores contemporâneos. Mas, claro, há uma imbricação entre o autoritarismo histórico e o autoritarismo neoliberal. A separação na obra é conceitual. O ponto é o que disse acima: não há neoliberalismo sem autoritarismo. Sua essência é antidemocrática. O pleonasmo no título é intencional justamente para reforçar o conceito. Neoliberalismo e autoritarismo são duas faces de uma mesma moeda: o capitalismo predatório contemporâneo.

  • E a extrema direita, também trada no livro, podemos dizer que no Brasil ela é sinônimo do bolsonarismo?

Sem dúvida alguma. A caricatura da extrema-direita no Brasil é o bolsonarismo. Havia muita discussão se seria possível considerar o bolsonarismo como um movimento sociopolítico, assim como o getulismo no Brasil dos anos 40, o chavismo na Venezuela, o trumpismo nos EUA, o peronismo na Argentina, o correísmo no Equador, dentre outros movimentos sociopolíticos personalistas reconhecidos. Eu defendo que sim, pois trata-se de um movimento com características muito próprias e há uma seção no livro especificamente dedicada a essa temática. O bolsonarismo, neste sentido, é um movimento de extrema-direita, em total alinhamento com uma configuração mundial.

Dentre essas características, podemos elencar algumas práticas de extremismo político: a retórica do ódio, a propagação do medo sob a esperança, as questões morais trazidas em forma de pânico, a preponderância do ressentimento acima de qualquer dimensão de solidariedade, a racionalidade mercadológica, a crença de que o estado é um mal (mas deve ser utilizado para financiar uns poucos), o ataque às instituições democráticas, a demonização dos adversários políticos e de qualquer voz que venha da oposição, além de uma completa abdicação da luta por justiça – esses são alguns dos fatores que me lembro aqui de cabeça, mas poderia elencar vários outros. É neste contexto que a agenda política se transforma apenas numa narrativa e não em um projeto de país. Essas são algumas das razões pelas quais o bolsonarismo representa uma tragédia incomparavelmente pior (neste quesito de projeto de nação) à ditadura 1964-1985.

  • Na sua opinião, para onde caminham o bolsonarismo e a própria extrema direita? As políticas sociais do governo federal e o fortalecimento de um projeto político democrático nos estados e no Congresso Nacional poderão frear a extrema direita no Brasil?

Essa é a grande questão. Não acredito que cientistas sociais, filósofos políticos, antropólogos, dentre outros devamos nos comprometer em traçar prognósticos. Ao contrário da medicina e áreas afins, o pensamento reflexivo não produz bons prognósticos, apesar de edificar belos diagnósticos. Isso me lembra, inclusive, uma clássica frase de Hegel: “A coruja de Minerva levanta voo ao cair do crepúsculo”, ou seja, o pensamento reflexivo parte de uma realidade dada, algo cingido no tempo.

Mas vou ousar aqui uma análise, depois da premissa acima. Penso, particularmente, que a extrema-direita veio para ficar. Sempre houve uma parcela da população com esses valores e que se escamoteava de alguma maneira. Bolsonaro surgiu e conseguiu capitanear este sentimento há tempos presente, mas escamoteado por uma parcela significativa da sociedade. O bolsonarismo não veio de Marte e somente teve êxitos eleitorais porque encontrou eco na sociedade brasileira.

Não acredito que o bolsonarismo arrefeça com o sucesso das políticas sociais do governo ou com a construção de uma grande concertação democrática ou uma Frente Ampla. O buraco é mais embaixo, como diz o ditado popular. Há um livro recentemente lançado pelo Felipe Nunes e o Thomas Traumann que mostram bem isso (o livro se chama: Biografia do Abismo, como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil). O bolsonarismo, inclusive, tem tempo e potencial de se reinventar com alguém menos polêmico e mais envernizado, o que pode ser ainda mais perigoso para a ordem democrática. Mas o fato de termos um tecido social traumatizado e uma extrema-direita viva, não quer dizer que tenhamos de ficar com os braços cruzados. Ao contrário, é dever de todo democrata fazer alertas, advertir as pessoas e esclarecer os riscos que a sociedade brasileira corre.

7. Em Itaúna, como você sabe, há uma tendência considerável de alcance de poder pela direita, alimentada por um bolsonarismo formado por “cristãos conservadores” e jovens que “odeiam política”. As demais forças políticas terão espaço nessa nova onda? De que forma isso será possível?

Uma coisa que quero deixar claro: extrema-direita não é direita. A direita clássica, o liberalismo, nada tem que ver com o bolsonarismo. O liberalismo, por exemplo, é totalmente favorável às liberdades individuais e o moralismo bolsonarista é uma afronta a qualquer liberal. Do mesmo modo, o conservadorismo, que é uma corrente política totalmente alinhada com a defesa das instituições, não tem nada que ver com o bolsonarismo que, por sua vez, implode toda a institucionalidade.

O bolsonarismo, por tudo isso, faz uma espécie de apologia à ignorância, dinamita os conceitos, os princípios e se vale apenas de uma narrativa muito superficial, mas que atinge eficientemente a muitas pessoas por uma série de razões, algumas das quais exponho no livro.

A extrema-direita somente será vencida se a sociedade brasileira tiver capacidade de olhar para si mesma, refletir, fugir do discurso fácil do ódio à política. Esse discurso mesmo é de uma irracionalidade completa. Como pode alguém como Jair Bolsonaro, um deputado por décadas e acostumado a todas as velhas práticas políticas, cuja família inteira se serve das benesses do poder, se colocar como alguém antissistema? É a narrativa acima de qualquer racionalidade. Por isso digo que a razão quando vem à tona vence o bolsonarismo facilmente.

Dito isso, é importante que as forças políticas brasileiras apresentem soluções e demonstrem que nem todos que são contrários ao bolsonarismo são petistas ou lulistas. Isso é falacioso e apenas alimenta o discurso polarizador. É muito importante também que as pessoas saibam que entre o neoliberalismo autoritário (representado no Brasil pelo bolsonarismo) e o socialismo revolucionário, há várias outras possibilidades. Há a social-democracia, por exemplo, o trabalhismo, o nacional-desenvolvimentismo, o liberalismo social, o socialismo democrático, o comunitarismo, dentre outros. É falacioso dizer que apenas Bolsonaro e seus asseclas são capazes de vocalizar, por exemplo, as questões relacionadas ao conservadorismo no Brasil. Pelo contrário, como disse anteriormente, o bolsonarismo não é conservador na essência e tampouco liberal. O bolsonarismo é, em seu cerne, um movimento protofascista e autoritário.

Portanto, é possível e desejável que as parcelas da população de Itaúna e de outras cidades Brasil afora que se identificam com o bolsonarismo hoje, encontrem outros matizes políticos para se identificar. Isso, no entanto, não vai acontecer automaticamente. É fundamental que a direita democrática brasileira também se reorganize e tenha a capacidade de dialogar com amplos setores da sociedade que encontram no bolsonarismo a salvaguarda para os seus valores, como os evangélicos por exemplo.

De todo modo, sempre haverá um percentual considerável que se identificará com a extrema direita. Isso se dará no Brasil e em outros países do mundo, a própria Itália, a Hungria e a Polônia possuem uma extrema-direita muito capilarizada hoje.

A longo prazo, há apenas uma solução: uma educação libertadora e emancipadora de consciências. Num curto prazo, é importante que a institucionalidade funcione, que o Ministério Pública e o Judiciário coíbam os abusos e as práticas autoritárias e que os partidos políticos consigam dialogar com a sociedade, oferecendo soluções e defendendo a ordem democrática. O caminho não é fácil. Como pesquisador e intelectual, não prevejo que os anos vindouros sejam tranquilos. Por outro lado, como gestor e militante, sinto-me desafiado a fazer a minha parte e a trabalhar pela racionalidade e pela consciência das pessoas. É o que devemos fazer todos os democratas deste país.

Eu sei que a resposta está grande, mas preciso acrescentar mais uma coisa aqui: as cidades não podem cair na armadilha dessa polarização nacional. Por uma razão muito simples: a pauta de costumes, a questão econômica e outras temáticas que podem polarizar lá em cima não têm nada a ver com a realidade aqui em baixo, nos municípios. Para que existem vereadores, prefeito e vice? Para cuidarem da realidade local, investirem em escolas de qualidade, saúde básica e secundária eficientes, infraestrutura urbana e rural adequadas, zeladoria bem feita etc. Esse discurso nacionalizado é uma armadilha nas eleições de 2024. Espero que Itaúna e outras cidades não caiam nisso e saibam escolher bons gestores e não políticos retóricos. Se alguém quiser discutir pauta nacional nas eleições de 2024, que se candidate a deputado federal, senador ou presidente da República.

Muito obrigado ao Jornal S’PASSO pelo espaço. Um abraço a todas e todos os itaunenses. Tenho uma relação muito forte e de admiração para com a cidade.

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