@toniramosgoncalves*
No chão, a mancha do tênis encharcado, os vidros da casa embaçados, a água vazando nas calhas – a chuva parece fumaça, e o bairro desaparece no meio dela. No apartamento, a tarde declina e o Dia dos Namorados será comemorado numa noite molhada.
Andressa ajeita a cortina da sala nos cantos da janela e, cruzando os braços num arrepio, puxa as mangas do suéter.
– Com essa chuva, a prainha vai inundar – alerta Lúcio enquanto retira os tênis molhados. – Já viu os vídeos que enviaram no WhatsApp?
– Vi, sim. Melhor cancelar a reserva, não acha? – sugere Andressa.
O homem concorda e pergunta em seguida:
– E o Luquinha, já o deixou na casa da sua irmã?
A mulher faz um joinha para ele enquanto busca nos contatos do celular o telefone do bar.
Lúcio queria sair para se distrair um pouco com a esposa, algo que não fazia há muito tempo. A criança exigia cuidados o tempo todo, seja da mãe ou do pai. Agora, o desencanto se dilatava. Nas gotas d’água das vidraças, escorria o projeto.
Ele foi para o banho, ouvindo a voz da mulher dizendo que a avenida Jove Soares estava inundada, com quase todos os bares afetados. A água arrastara automóveis, mesas, cadeiras e tudo o que havia pela calçada.
– Não lembro de uma chuva assim no Dia dos Namorados – ela gritou da sala.
No banheiro, ele ouve a mulher conversando novamente ao celular, agora com o filho na casa da cunhada. Com os dois sozinhos, decide que abrirá uma garrafa de vinho, escolherá algumas músicas e ficará em paz com a esposa. Fariam uma festa particular, sem bar, na penumbra da noite, com uma melodia ao fundo. Por que não?
Lúcio capricha no visual: faz a barba, se perfuma e sai do banheiro enrolado numa toalha. Ela se assusta quando ele a abraça por trás, enquanto se distraía na sala, buscando algo na estante.
– Que isso, ficou doido? Vai vestir uma roupa, homem! Não está vendo que está frio?
Andressa o olha de lado e ri. Ela é assim mesmo, descontraída, ri fácil com um riso que ele nem sempre entende, mas gosta de ver, porque é amplo e brilhante. Ele a puxa para perto, e ficam se olhando como se estivessem vendo algo surpreendente. Então, os cabelos dela começam a roçar seu rosto, e as mãos e as pernas se apertam. O tato já estava habituado ao seu corpo; todavia, não despertava grandes emoções.
– Vamos dançar?
– Ah, não, benzinho.
– Você sempre diz não.
– Eu não gosto de dançar.
– Nem eu.
– Então vamos dançar.
Andressa se vira e volta à estante para escolher uma música. Amontoa os discos de vinil no chão, senta-se ao lado deles e começa a ler as contracapas, esquecendo o resto.
– Quer beber, Andressa?
Ela demora a responder, diz que não e continua lendo as capas.
Lúcio retorna vestido com um short, trazendo o vinho do Porto que ganhou de um cliente.
Andressa demora, mas finalmente coloca um dos discos nostálgicos de costume no aparelho de som e apaga a luz principal. Ela o pega pela mão e cola seu corpo ao dele. A sensualidade é vagarosa, quase mecânica. Mas o contato aos poucos adquire uma emoção nova: o rosto de Andressa parece mais quente, e o pensamento de Lúcio começa a explorar o corpo dela, dissipando a insatisfação de não sair e provocando as reações de outrora.
Andressa sorri e boceja. Ele também sente sono. Estão acostumados a dormir cedo. A essa altura, ele começa a se lembrar do trabalho na manhã seguinte. Ela bebe do seu copo; ele também, e esquecem os compromissos de rotina. O hálito da voz e o cheiro nos cabelos e nos braços os fazem esquecer o resto.
– Vamos deitar? – ele a convida.
– Você não comeu nada, só bebeu. Devia comer alguma coisa. Eu pedi uma pizza mais cedo.
Lúcio não responde, só quer aproveitar o momento. Começam a falar coisas desencontradas, e Andressa vagueia nas ideias, como de hábito, silenciando depois enquanto abre o vestido, lentamente, mostrando aos poucos os contornos dos seios e das coxas.
Vão para o quarto. Nos lençóis brancos, os quadris se encontram, os seios se dilatam, os cheiros se acentuam. Então, a chuva se repete, e pelos vidros embaçados aparecem as gotas brilhantes que, como estrelas, refletem a luz da rua.
De repente, o interfone toca. Eles se assustam e se entreolham.
– Deve ser a pizza – lembra a mulher.
Lúcio se levanta contrariado e praguejando. Ao ver o motoboy na portaria, sorrindo mesmo debaixo daquele aguaceiro, baixa a guarda e sente compaixão pelo rapaz.
Andressa o aguarda na sala, recomposta e pronta para matar a fome. Após comerem, cada um se acomoda no seu sofá. Ela logo cai no sono. Precisam dar um tempo antes de continuarem o que foi interrompido. Lúcio se estica no sofá, sentindo a modorra da bebida. Olha o relógio e vê que pode dormir um pouco.
Ele acorda sem saber quanto tempo se passou. A vista não distingue as horas no celular. Ouve a chuva ainda forte lá fora. Verifica as horas no celular novamente e se irrita. Encontra Andressa na cama, dormindo tranquilamente, encolhida nas cobertas. Se ele não tivesse bebido tanto, aguentaria ficar lendo, atravessaria o resto da madrugada, não perderia o horário nem acordaria de péssimo humor. Enfia a cabeça no travesseiro, encarando a situação. Arrisca:
– Andressa.
Aperta-lhe o braço e chama algumas vezes. Ela se revira e, de repente, arregala os olhos, olhando assustada.
– Que foi?
– Nada – respondeu irritado. – O que podia ser?
– A chuva parou?
– Ainda não.
– E o que é que você quer?
– Não se esqueça de me acordar às sete.
* Toni Ramos Gonçalves (Não é o Global)
Professor de História, Escritor, Editor, ex-presidente e um dos fundadores da Academia Itaunense de Letras – AILE.