@toniramosgoncalves*
Meu caro, irmão!
Hoje tive que interromper minha jornada rumo ao sul, onde penso ser o local mais seguro. No meio da tarde, o céu subitamente se tornou acinzentado e escuro, como se a noite tivesse envolvido toda a Terra na sua escuridão.
Desde que as armas nucleares cruzaram a órbita baixa do planeta, sabia que o inverno nuclear chegaria com suas nuvens cheias de poeira e fuligem da destruição das cidades. Não sei dizer quanto tempo faz que o mundo se estilhaçou. Não conto mais as horas e nem os dias. O que nos levou a destruição? A maldade? A ambição? Quem foi que matou o mundo?
Agora estou aqui, nas ruínas de uma casa destruída pelas bombas. A temperatura despencou e me vejo forçado a acender uma fogueira com alguns livros que encontrei em uma estante caída entre os destroços. Só me resta um livro de poesias de Drummond. Após ler um poema, arranco a página e a lanço nas chamas que me aquecem. Triste sina para alguém como eu, que gostava de ler.
A vida se tornou um perigo constante e a cada dia tudo se torna mais difícil. Aqueles que sobreviveram definham e praticamente se portam como animais. Ficam à espreita, prontos para atacar e roubar. A chuva ácida que cai por alguns minutos só piora ainda mais as coisas, contaminando a água, as plantas e matando aos poucos os seres vivos que restam. É assim que as coisas são quando o mundo se acaba.
Se pudéssemos voltar no tempo, ao início deste século XXI, e entender que os fatos não eram apenas pontos de vista, mas sim um retrocesso absurdo, tudo poderia ser diferente. Hoje, os poucos fiapos de humanidade não estariam presos no papel, como esta carta.
Não sei por quanto tempo ainda conseguirei escrever no meu diário, meu único confidente. É até inútil… não haverá ninguém para ler. Sinto-me cada dia mais fraco. Faz tempo que não me alimento. A última vez foi um cachorro que me seguia insistentemente e que me fez vomitar por dois dias.
Desde então, não sou mais o mesmo, e essas podem ser as minhas últimas palavras. Você nunca sabe o que o amanhã pode trazer. O que me conforta é saber que você e Alice estão seguros nas colônias em Marte. Queria ao menos pedir o seu perdão por todo mal que lhe fiz. Mesmo depois de tantos anos, ainda me arrependo de minhas escolhas. O inferno que hoje vivo, eu fiz por merecer. Este mundo é meu calvário.
* Toni Ramos Gonçalves (Não é o Global)
Historiador, Escritor, Editor, ex-presidente e um dos fundadores da Academia Itaunense de Letras – AILE.