O Engenheiro de Deus

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Maria Lúcia  Mendes*

O presépio do Umberto Salera traduz o encanto de muitos natais itaunenses. Amor, criatividade e ternura, engenhavam-se pelas mãos do sapateiro italiano retratando com magia e graça o nascimento do Menino. Era um presépio diferente, movimentado pela engrenagem singular de um cano d’água, pedaços de madeira, arame, latas vazias e um emaranhado de cordões. De posse desses instrumentos tão simples, edificava-se toda uma arquitetura de sonhos. A água batia nas latas e estas cutucavam os cordões, fazendo com que as figuras se movimentassem em gestos de incrível precisão. Tudo ali cheirava à criatividade. As figuras, em sua maioria, eram camponeses típicos da Itália, com suas calças de suspensórios, camisas largas e boinas xadrez. Já as mulheres, autênticas matronas, vestiam saia rodada e usavam lenços na cabeça. De um lado e de outro, trepando sobre as encostas da serra, Belém era uma fileira de casas de papelão, com muita gente espiando das janelas. Por um trilho de areia que se enroscava ao longe, seguia um carreiro conduzindo um  carro de boi abarrotado de lenha. No meio do arrozal, plantado em latas de goiabada, viam-se camponesinhos de  enxada em punho, enquanto mais adiante, dois lenhadores serravam um toco num vaivém ritmado. O moinho e o monjolo eram a alegria da meninada! A água espirrava nas rodas, girava o moinho e descia em cascata, formando um poço. Era ali que se via a figura sem par de um pescador que volta e meia mergulhava o anzol, fisgando um peixe. Numa igrejinha, lá no cocoruto da serra, um padre dizia missa e o sacristão fazia das suas, repimpando na corda do sino: dlém… dlém… dlém…

Como cenário de beleza maior, havia a gruta de carvão e malacacheta onde se abrigava o Menino, sorridente entre as palhas.

Ao redor, esparramados nas planícies de lodo, carneirinhos lanudos fingiam devorar tufos de capim, sob o olhar sereno dos pastores. A fama do presépio corria léguas. Moços, velhos e crianças ficavam horas inteiras, olhos grudados naquele malabarismo de ternuras.

Uma visita curiosa era a das mulheres lenheiras; descalças e cansadas elas encostavam o feixe, a rodilha e começavam o ritual de sempre; ajoelhavam-se, benziam-se, rezavam em voz alta, depois abriam os embornais de onde retiravam as frutas que colhiam  no mato – bacuparis, guabirobas, mamacadelas e cajuzinhos. Não demorava nada as frutinhas eram trocadas por uma outra moeda colocada no cofre, ao pé da gruta. Quando a moeda caía no cofre,  o Menino movimentava-se num gracioso gesto de agradecimento.

Quanto enlevo nos trouxe este presépio, povoando de alegria dezembros distantes. Num mundo, como este de hoje onde há tantas mãos que acusam, mãos que destroem, que matam, mãos que engenham bombas e armas nucleares, pensemos nas tuas mãos Umberto Salera, arquiteto de sonhos, engenheiro de Deus.

Maria Lúcia Mendes

Maria Lúcia Mendes, 81, é professora, poeta e escritora, autora de “Recado em pedras… e pétalas”, “Miragem”, “A guarda do Anjo”, “O cheiro da maçã”, “Atalho”, entre outros. A crônica “O engenheiro de Deus” foi publicada no livro “Miragem”, Editora O Lutador, 1986.

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