A crônica, como gênero literário, possui uma história intrigante que a distingue de outros estilos de escrita. Sua trajetória remonta às suas origens no campo do jornalismo, onde tinha a tarefa de capturar e retratar os eventos e acontecimentos do cotidiano. No entanto, à medida que o tempo avançava, a crônica no Brasil começou a trilhar um caminho próprio, assumindo uma importância e um estatuto literário distintos que a elevaram muito além de seu contexto jornalístico de origem.
É inegável que, ao longo desse percurso literário, alguns nomes brilharam com intensidade, e entre eles, destaca-se Fernando Sabino como um dos grandes mestres da crônica brasileira. Seus textos hábeis, bem-humorados e perspicazes não apenas narravam os aspectos do cotidiano, mas também os transcenderam, oferecendo aos leitores uma visão única da vida e da sociedade. Entre suas melhores crônicas destaco “A última flor do Lácio”, “A falta que ela me faz” e “A última crônica”.
O VAZIO QUE ELA DEIXA
(Inspirado no universo de Fernando Sabino)
@toniramosgonçalves*
Quando saímos juntos da sala de audiência, fui atingido pela dura realidade. Aquele dia estava três horas mais escuro do que o horário normal, logo após a sentença do juiz. Ele decretou minha prisão em um prazo de setenta e duas horas, caso eu não efetuasse o pagamento dos alimentos devidos à minha filha. A sentença foi clara, direta e quase parecia indolor.
– Precisava me levar à justiça? Eu não te disse que estava escrevendo um livro, que vai me dar um bom dinheiro? – indaguei, buscando alguma justificativa que amenizasse o golpe.
Nos cílios de Alice, um esboço de oceano ou uma gota despercebida.
– Esquece isso, Eduardo. Você ganhou um prêmio literário e foi só. Você não tem leitores, aliás, no Brasil ninguém lê. E não é o seu dinheiro o que mais me faz falta durante todos esses anos. Na realidade, você nunca foi meu, nem da nossa filha e, certamente, nem de você mesmo. É uma pena que não tenha percebido isso a tempo.
Chegamos à esquina e fomos envolvidos pela multidão que atravessava o sinal. Nos distanciamos sem querer, ambos ainda acenando discretamente, sem que ninguém percebesse as lágrimas em nossos rostos. Olhei-a com tristeza até que a distância não permitisse mais.
Caminhei cabisbaixo em direção ao ponto de ônibus, o ódio brotando com força máxima em meu coração. Quis gritar, para que meus conflitos escapassem, fazer uma verdadeira oração, um discurso de mim para mim. Sentia-me atordoado pelos carros passando com o barulho de seus motores e buzinas, pelos xingamentos entre os motoristas, enquanto, nas calçadas, caminhavam os seres escravizados por seus afazeres e egoísmo, que não lhes permitia compartilhar a dor daqueles que sofriam, como eu. Aliás, nem mesmo tinha sacudido a cabeça, nem sabia se realmente queria procurar um emprego ou continuar escrevendo tolices para gente tola. Apenas tive vontade de chutar alguém na rua, ou uma lata de lixo. Tanto fazia.
Enquanto aguardava a chegada da lotação, um pouco à frente, observei um casal sem teto, em meio a uma confusão de lonas, papelões e miséria. Passei a observá-los, a mulher com os cabelos despenteados, o olhar vazio, cansado, mas cheio de ternura, olhando um homem brincando com um garotinho de aproximadamente dois anos. Nem o vento frio da chuva que se aproximava no horizonte fez com que eles colocassem uma camisa nele, e o garotinho ficou exposto com aquela barriga inchada de vermes. O menino olhava ansioso para a tentativa do homem de acender uma vela com uma caixa de fósforos, sob o vento intenso. O homem sorria, mostrando aqueles cacos de dentes, a cada tentativa frustrada.
Somente eu prestava atenção neles. Depois de muita expectativa, o homem conseguiu acender a vela e imediatamente, os três, talvez pai, mãe e filho, começaram a bater palmas, cantando de forma sincera um “Parabéns pra você…”
Entrei no ônibus, que estava vazio para aquele horário; mesmo assim, consegui avistar a criança soprando a vela e abraçando seu pai. O homem, com um olhar satisfeito, percorreu a avenida como se estivesse convencido do sucesso da celebração. Quando o ônibus passou por eles, na lentidão do trânsito, ele me notou, nossos olhares se encontraram. Ele ficou perturbado e constrangido por um momento, hesitou, parecia que ia baixar a cabeça, mas no final, sustentou o olhar e finalmente se abriu em um sorriso.
* Toni Ramos Gonçalves
Escritor, editor, ex-presidente e um dos fundadores da Academia Itaunense de Letras. Graduando em História e Jornalismo.