CONFIDÊNCIAS DE UMA DAMA DA NOITE

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@toniramosgoncalves*

O áudio que recebi por mensagem nas primeiras horas do dia de um colega da faculdade, dizia o seguinte:

– Bom dia! Tudo bem? Aqui, consegui encontrar uma pessoa, uma mulher, que leu sua crônica no jornal há alguns dias e quer conversar com você. Só que tem um problema: a localização que ela me enviou indica que ela mora na zona rural e tem urgência. Se possível, ainda hoje. Consegue ir lá? Se puder me avise.

Ao ouvir a mensagem, concordei prontamente, pois sabia qual era o assunto e isso me deixou entusiasmado. Encontrar alguém disposto a falar sobre a zona boêmia dos velhos tempos da Rua Gonçalves da Guia é algo bastante raro, já que muitas pessoas que frequentaram aquele lugar preferem manter sigilo e discrição.

Imediatamente, reorganizei meus compromissos para o dia seguinte e, logo após o almoço, peguei a estrada. Naquela semana, experimentamos a mais intensa onda de calor registrada em décadas, com o sol escaldante dominando um céu azul e sem nuvens. Com o auxílio do GPS, segui por um trecho asfaltado e depois por cerca de quarenta quilômetros de estrada de terra extremamente esburacada, o que acabou atrasando ainda mais minha chegada ao destino.

Em uma bifurcação, me perdi, e a falta de internet me deixou vagando sem rumo. Por fim, estacionei o carro, tentando encontrar algum sinal, quando avistei alguém se aproximando ao longe. Naquele local remoto e completamente isolado, encontrar auxílio era quase um milagre. Saí do carro e fiz um gesto para que parasse. O homem estava montado em uma bicicleta Monark barra circular com garupa, e tinha uma enxada presa a ela. O ciclista era um senhor de barba grande, totalmente branca, olhos pequenos e usava um chapéu de palha. Ele parou e respondeu ao meu cumprimento de boa tarde com um sorriso cheio de cacos de dentes. Perguntei onde morava a Dona Cylla, e ele pensou por alguns segundos antes de estender a mão na direção de onde vinha e disse com uma voz rouca:

– Pode seguir para riba aí, que tá no caminho certo. Lá na frente depois do mata-burro, vira à esquerda que vai avistar umas casinhas. A casa dela é a última à esquerda.

Agradeci a informação e, ao entrar no carro novamente, vi o velho desaparecer na poeira através do retrovisor. Em poucos minutos, cheguei ao meu destino. A casa era simples e parecia ter passado por uma reforma recentemente. Bati palmas e chamei pelo nome da mulher que procurava. Um cachorro imenso, de cor caramelo, uma mistura de fila e vira-lata, veio latindo na direção do portão. Uma mulher preta, com um lenço na cabeça, apareceu na varanda e perguntou se eu era o jornalista.

Respondi que sim, e ela desceu as escadas ajeitando o avental sobre a roupa. Não era uma mulher jovem, e parecia um pouco envergonhada, mas ao mesmo tempo repreendia o cachorro, exigindo que parasse de latir. Ao entrar, ela, agora com uma voz suave, apresentou-se como Dolores. O cão, por sua vez, pulava em mim, abanando o rabo e cheirando-me com seu enorme nariz. Ela repreendeu o animal e, evitando contato visual, pediu que eu a seguisse, assegurando que o cachorro não morderia.

Não entramos na casa, mas contornamos a varanda que a cercava até chegarmos a uma área que parecia ser uma cozinha improvisada do lado de fora. No sofá, que estava bastante danificado e tinha um tapete em cima para esconder as espumas que insistiam em sair, uma senhora gorda acariciava um gatinho em seu colo. Dolores a chamou para me anunciar, falando alto como se a outra tivesse algum problema auditivo.

Por um momento, me tornei o centro da atenção das duas, que me olharam curiosas. A mulher gorda tinha dificuldades e seus seios caíam sobre a barriga, quase alcançando os joelhos, enquanto ela se levantava. Notei então que suas pernas estavam inchadas e envoltas em faixas. Sua estatura baixa combinava com seu apelido, Cilinha. Seus cabelos estavam quase totalmente brancos e curtos, sua pele clara e enrugada, e ela usava um vestido desbotado com estampas de flores vermelhas. Ela deu alguns passos lentamente na minha direção, mesmo com óculos, seu rosto franzia os olhos para me ver melhor.

– Sabia que era você, Toninho. Como você engordou! Quando menino você era magricelo e vivia careca devido ao tanto de piolho que tinha. Mas agora você está mais bonito com esse cabelo grisalho. Não deve se lembrar de mim, né?

Então, ela se aproximou mais e me abraçou, e eu fiquei meio desajeitado. Havia um cheiro de leite de rosas, cigarro, cebola e carne velha.

– Vem cá, vamos sentar à mesa enquanto a Dolores faz um cafezinho para nós. –falou alto me puxando pela mão. – Mais cedo, fizemos biscoito de polvilho. Você costumava buscar coisas para mim lá na Venda do Geraldo Creolando, no Mercadinho da Lica, no Açougue do Valter, lá na Pracinha do Capeta. Até que um dia você perdeu o dinheiro que te dei para comprar sabão em pó… e você sumiu. Fui até a sua casa, lembra? Sua mãe te deu uma surra, fiquei até com pena de você. Era muito jovem para se lembrar de mim. Quando nos conhecemos, eu morava no Cantinho do Céu, o destino de todas as putas velhas daquela rua.

Sim, eu me lembrava desse episódio, mas não de sua aparência. Diziam que ela fora a mulher mais bonita da Rua Gonçalves da Guia, mas o tempo foi implacável, e eu não distinguia nenhum traço de sua antiga beleza, exceto pelos seus olhos verdes, que ficavam enormes atrás dos óculos.

Sentei-me em frente a ela enquanto Dolores cuidava do fogão a lenha em um canto daquela área. No começo, não sabia como começar a entrevista, e ela pareceu perceber isso.

– Toninho, parece que você está como alguém indo a um bordel pela primeira vez. – Ela disse com um sorriso amarelo. Suas mãos eram gordas e cheias de manchas escuras, semelhantes a sardas.

Eu me senti um pouco ridículo e expliquei que ainda era estudante de jornalismo e que me faltava experiência em campo para entrevistas, mas que estava aprendendo.

– Gostei demais de sua crônica, menino. Você escreve bem. Soube também que é escritor. É ótimo saber que você teve sucesso na vida. É difícil ver pessoas boas saindo daquele bairro onde você cresceu. Você demonstrou muita coragem em seu texto. Poucas pessoas gostam de falar sobre a zona boêmia, especialmente os ricos que nunca saíam de lá. E quanto às mulheres que eram prostitutas, nem se fala em abrir a boca. Mas eu entendo… Quando se tem uma família, é difícil revelar esses segredos. Por isso, pedi que você viesse aqui. Amanhã, irei para a capital fazer uma cirurgia e passarei um longo período na casa dos meus filhos enquanto me recupero. Nem sei se vou voltar aqui. Estamos reformando a casa para vendê-la em breve. Neste fim de mundo, apesar de a vida passar mais devagar, é complicado cuidar de uma velha como eu.

– Você se importa se eu gravar nossa conversa? – perguntei timidamente.

– Claro que não, meu rapaz. Foi para isso que te chamei aqui. Coloque esse aparelho para funcionar.

E então o gravador começou a registrar a entrevista.

* Toni Ramos Gonçalves

Professor de História, Escritor, Editor, ex-presidente e um dos fundadores da Academia Itaunense de Letras – AILE. Graduando em Jornalismo.