A HABILIDADE DE RIR DE SI MESMO

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A obra literária de Fernando Sabino segundo o itaunense Marco Aurélio Matos
@toniramosgoncalves*

No dia 12 de outubro de 2023, celebramos o centenário de nascimento de um dos mais ilustres escritores brasileiros, Fernando Sabino. Além de reverenciarmos sua distinta carreira literária, este texto nos conduzirá por uma viagem à obra desse autor, sob a perspectiva íntima de um de seus amigos mais próximos, Marco Aurélio Matos (1920-1992).

Fernando Sabino mantinha uma extensa rede de amizades, e entre essas, destacava-se Marco Aurélio Matos. Sua amizade com o escritor itaunense, revela-se como um fio condutor que nos permite adentrar profundamente na trajetória de Sabino e nas influências que moldaram sua escrita. Os dois encontravam-se semanalmente para manter a conversa em dia. Em uma entrevista à revista “Veja Minas Gerais”, Fernando Sabino mencionou que Itaúna, a cidade de João Dornas Filho, se localizava em um apartamento em Copacabana, onde vivia Marco Aurélio Matos, que ele descreveu como “o bom.”

Embora seja uma figura pouco lembrada em Itaúna, Marco Aurélio Matos foi um daqueles que se foram e nunca mais voltaram. Filho de Mário Matos e Elisa de Moura Matos, ele teve uma breve incursão na política, resultando em apenas um voto nas eleições locais. Essa experiência o deixou profundamente magoado com a cidade. Diante desse episódio, Fernando ironizou, dizendo que o amigo era bom demais para a política.  

Em um ensaio intitulado “Fernando Sabino: o cotidiano como aventura” (1984), incluído no livro “Fernando Sabino – Obra Reunida” em homenagem aos 60 anos do famoso escritor, Marco Aurélio Matos dividiu a trajetória literária do homenageado em três fases.

A primeira fase teve início quando Fernando tinha 17 anos e publicou seu primeiro livro de contos, “Os Grilos Não Cantam Mais” (1941). No começo Fernando dedicou-se principalmente aos contos e crônicas, manifestando sua busca pela compreensão da vida.

De acordo com Marco Aurélio Matos (1996), nessa fase inicial da carreira de Sabino, era evidente o uso contido da linguagem em seus livros, o que conferia autenticidade aos personagens e situações apresentadas. Além disso, o humor, uma característica peculiar do autor, estava presente de forma discreta, mas seria mais proeminente em suas obras futuras.

Entre os anos de 1946 e 1948, ele passou dois anos nos Estados Unidos, onde, nos momentos de solidão, escreveu o livro “Cidade Vazia” (1948). Essa fase encerrou-se com a tradução do livro ‘Lugares Comuns’ em 1952.

A segunda fase da trajetória literária de Fernando Sabino começa com o lançamento do romance “Encontro Marcado” em 1956, uma obra que se destaca como uma das mais significativas da moderna literatura brasileira e que serviu de inspiração para inúmeras gerações de leitores. Para muitos, essa obra representa uma densa fusão entre sua própria autobiografia e a ficção.

Para o itaunense Marco Aurélio Matos, “Encontro Marcado” é um livro que captura a essência da vida no seu auge, como se estivéssemos no meio do caminho de nossa própria existência. Nesse trabalho, o autor busca habilmente reunir as diversas influências presentes em sua sociedade, utilizando-as como uma fonte rica de inspiração para a criação de personagens. Ao mesmo tempo, Sabino utiliza sua escrita para tentar reestruturar um mundo que parecia estar desmoronando ao seu redor.

Nessa mesma fase, é importante mencionar outra obra significativa de Fernando, intitulada “O Homem Nu,” publicada em 1960. Este livro é composto por crônicas que também contribuem para a compreensão do cotidiano e da sociedade da época. Foi neste período que Marco Aurélio colaborou com Fernando Sabino na criação do livro “O Evangelho das Crianças,” em 1968, destinado ao público infantil. A fase final dessa segunda etapa literária culmina com a publicação de “O Encontro das Águas” em 1977, demonstrando a consistência e a evolução de seu trabalho ao longo dos anos.

A terceira etapa da trajetória literária de Fernando Sabino foi marcada pelo lançamento de seu segundo romance, intitulado “O Grande Mentecapto” (1979), o qual conquistou o Prêmio Jabuti no ano seguinte. A criação dessa obra teve seu início quando Fernando Sabino estava residindo em Nova York, no ano de 1948, e finalizado em 1979 em questão de poucos dias.

Conforme a análise detalhada de Marco Aurélio Matos, nessa fase, Fernando Sabino revela uma extraordinária liberdade criativa, em que sua imaginação parece fluir sem restrições significativas. No entanto, essa liberdade criativa encontra suas únicas limitações quando ele se confronta com a figura central da história, que, de alguma forma, imprime sua própria personalidade, preferências, aversões ao trabalho convencional, uma formação humanística e uma notável coragem ao enfrentar interações com indivíduos, instituições e o poder.

Esse período culmina com a publicação de “O Menino no Espelho” em 1982, um livro que pode ser considerado uma das joias do gênero literário. Isso se deve à maneira significativa como explora a memória, reflete sobre o enigma do tempo e aborda a carga da saudade que acompanha a perda de entes queridos, evocando a sensação de vazio. Esta fase marca a maturidade e a profundidade de sua carreira literária.

Em sua conclusão, Marco Aurélio destaca que o humor presente nas obras de Fernando Sabino não apenas provoca risos, mas também evoca sentimentos profundos, pois trata de maneira amável e não ofensiva o humor inerente às complexidades da vida e das relações humanas. Para Marco Aurélio Matos, a grandeza do humor do autor mineiro reside na habilidade de rir de si mesmo.

Marco Aurélio Matos manteve contato com a escritora itaunense Maria Lúcia Mendes através de cartas por vários anos, estabelecendo uma conexão significativa, correspondências que ela guarda com muito carinho. Ângelo Matos revelou-me que toda semana seu pai, Lauro do Jubito, que era primo do escritor, recebia telefonemas do Rio de Janeiro e, apesar da distância física, criavam um espaço íntimo para boas conversas.

Fernando Sabino, que nos brindou com sua literatura única e sua visão singular do mundo, partiu no dia 11 de outubro de 2004, um dia antes de completar oitenta e um anos, vítima de um câncer. Seu sepultamento, ocorrido no Rio de Janeiro, ecoou ao som do jazz da banda com a qual ele havia tocado no início dos anos 90. Na sua lápide, por sua própria vontade, repousa o seguinte epitáfio: “Aqui jaz Fernando Sabino, nasceu homem, morreu menino.”

* Toni Ramos Gonçalves

Escritor, editor, ex-presidente e um dos fundadores da Academia Itaunense de Letras – AILE. Graduando em História e Jornalismo.