Foi ultrapassada a linha da mera rivalidade política, e isso não é recente. Migramos da diversidade e da divergência de ideias – um costume saudável e necessário, desde o nascimento da pólis, na Grécia Antiga – para um ringue ideológico, poucas vezes racional ou mesmo civilizado. Não é pessimismo, minha gente. É constatação. Basta ver como cresce a violência por motivação política, e ela é também psicológica, pois o “diferente” tem sido igualado a um inimigo, posto que a máxima “quem não pensa que nem eu deve ser extinto” se tornou, em muitos casos, a nova lei. A atual guerra na Ucrânia – guerra política – é apenas um dos possíveis exemplos, mesmo que ela não seja “apenas” sobre pensar diferente. Mas, qual é a origem dessa necessidade de aniquilamento do outro, inclusive no campo político? O pai da psicanálise pode nos ajudar a entender.
Em um diálogo estabelecido entre Freud e Einstein, por meio de cartas, o pai da física moderna perguntou ao médico de Viena se era possível livrar a humanidade da guerra. Na publicação do texto Por que a Guerra?, de 1932, o psicanalista responde que há no ser humano, inerentemente, o encontro de forças ambivalentes, sendo uma delas o que ele conceituou de “pulsão de morte”, algo da ordem de uma prática destrutiva que, curiosamente, também promove algum prazer. O que Freud advoga neste texto é que haveria alguma coisa no sentido de o organismo tentar preservar a própria vida destruindo a alheia. Pois bem: é aí onde mora a chave de uma possível reflexão sobre a relação entre as atuais eleições e a nossa saúde mental.
Partindo do pressuposto de que são os discursos e narrativas que moldam o nosso pensamento, e que o conteúdo do nosso pensamento tem grande parcela de peso no nosso comportamento, aquilo que escutamos, lemos e sobretudo recebemos no Whatsapp sobre política tem moldado, mais do que podemos imaginar, as nossas práticas. Usando a hipótese freudiana sobre o porquê guerrilhamos, pode-se inferir que quando há a ideia de lados opostos, como “eles x nós” ou “bandeira vermelha x bandeira verde e amarela”, o que se aposta, às vezes perversamente, é a tentativa de incutir a ideia de que alguém (que pensa e age diferente) deve ser eliminado, pois representa o perigo, a desordem, o mal. E é justamente nessa onda discursiva sobre anjos e demônios (bem infantil e fabulosa, por sinal) que se instala a guerra: verbal, simbólica, física, nuclear até!
A saúde mental não está isolada da questão política, até porque, por mais a-política que uma pessoa seja, ela está inserida num determinado contexto que é regido por um governo, por uma ideologia, por uma série de intenções que são exatamente políticas. O problema maior é essa crença ingênua de que existem “lado bom e lado ruim”, de que alguém poderá salvar o país desse ou daquele mal que levaria o Brasil a uma ruína. Não há “salvação”, como também não há “ruína”. O que há é a demanda de um projeto que possibilite a convivência social de modo minimamente decente e suportável, onde as pessoas comam, trabalhem, vivam. A “pulsão de morte”, como apresentado por Freud, é uma inerência, uma condição. O outro, o diferente, sempre será causa de algum incômodo, de algum estranhamento, pois é justamente essa diversidade que nos coloca em contato com o que há de mais humano em nós.
As eleições brasileiras de 2022 lembram “aquele caso” em que um homem gastou tudo que tinha, perdendo todos os seus bens, para tentar provar que estava certo, num caso judicial que não lhe renderia, caso ganhasse, nada muito além do que já possuía. Divergir, discordar, argumentar: tudo isso é base para uma sociedade mais plural, democrática e saudável. Entretanto, será que contabilizamos o que perdemos quando queremos ganhar a qualquer custo?
Referências:
SIGMUND, Freud. Além do princípio do prazer (1920-1976), In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Vol XVII.
______________. Por que a guerra? (1933), In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Vol XXII.
Nilmar Silva é Psicólogo (CRP 04/47630) e Filósofo, Especializando em Sexualidade, Gênero e Direitos Humanos; Especialista em Docência do Ensino Superior e MBA em Gestão de Pessoas. Atua clinicamente com foco na Saúde Mental de pessoas LGBTQIA+.
@psicologo_nilmar
psicologonilmar@gmail.com
Oi Nilmar! Muito bom seu texto!
Gostei de sua escuta do social”quem não pensa que nem eu deve ser extinto,” Sera???Fiquei pensando em Lacan: ” não há relação sexual” A saída sempre será Cada um tem de encontrar seu modo de gozar !