Leia o artigo de Maria Lúcia Mendes: “Meu Rio São João”

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Maria Lúcia Mendes

Professora aposentada da Universidade de Itaúna-MG

Maria Lúcia Mendes. Imagem: Academia Mineira de Letras

Meu rio São João

Todo mundo que passa lá na ponte deve de ficar cabreiro e sem entender, por quê é que vira e mexe estou aqui nesta beira do rio. É esquisito mesmo, um sujeito da minha idade escorado neste barranco, mais uma coisa eu juro, pescar é que não venho. Se carrego vara e anzol é mania que peguei desde moço, por modo de não andar com as mãos abanando.

A vara tá aqui, deitadinha no chão e não sei da era que cavaquei terra pegando minhocas. Que diacho é esse então, que venho urdir por essas bandas? Desde menino conheço tudo por aqui quando andava de cabo a rabo pelas matas atrás de gabiroba, mamacadela e outras tretas. Hoje meu lugar é ficar parado aqui. Se é dia de sol quente, busco a sombra de um pé de ingá, escoro o queixo com as mãos e dano a espiar a água descendo, descendo e a boniteza das piabas riscando a correnteza.

A vida da gente, companheiro também é assim: tem hora que corre mansa, preguiçosa, de repente fica braba, tropeça, esfola pra levantar com mais força. Nesse batido, nesse vai e vem quando é fé, o cristão já rabiscou um amontoado de histórias.

No cutucar o tempo, foi em março, anos quarenta, o povo esperando a enchente das goiabas, quando senão quando o céu preteou de fora a fora e a carapuça dos morros sumiu enfumaçada. Raios e trovões medonhos, ventania braba zunindo nas gretas, afogando velas e lamparinas. São Geromo, Santa Bárbara! – gaguejavam os mais velhos com o terço nas mãos e ramos bentos no fogo. Nisto, um estrondo sacudiu a pequena Itaúna. Uma tromba d’água despejou-se em fúria num morro próximo à Várzea.

Jesus, Jesus berravam as mães sob os olhos assustados das crianças amontoadas num canto da cozinha. E o São João? O velho rio tremeu e num arranco pegou brabeza, cresceu, cresceu e como louco esparramou-se varrendo tudo que topava pela frente. A Várzea inteira com suas casinhas encolhidas, tudo debaixo d’agua. O Nico folheiro, desesperado, enganchou a velha na cacunda e saiu de braçada aos gritos: chora não, mãe, chora não. Notícia ruim cria asas, com pouco moradores do centro e das beiradas, descem pra beira da linha num esbarrar de guarda-chuvas e boatos. Morreu gente? Muita?

O Higino com sua bitaca acima da estrada de ferro gabou por muitos anos, nunca vendera tanta cachaça como naquele dia. Até quem não era de gole molhou a goela, modo de espantar a friagem e entrar na água ajudando as vítimas. Na encosta do morro onde a nuvem despencou, se vê até hoje a terra vermelha escavada parecendo mais uma língua de fora apontando pra gente a proeza que foi o sumiço da costumeira enchente das goiabas.

O rio, o pai falava, melhor é não bulir com ele -quando ajudou nadadores da cidade a vasculhar as águas do meu São João em busca do corpo de Rosinha que saiu correndo de casa, beirou a ponte e pulou de uma vez por causa do Osvaldo bonitão que acabara o noivado com ela. À noite seguindo antiga crença, era a vez das cabaças com vela acesa deslizarem sob as águas. Segundo as beatas, onde a cabaça parasse…

Mas, companheiro tristezas à parte foi nessas águas que pintei e bordei na melhor quadra da vida, eu e os meninos do meu tempo, tropa levada, medonha pra enganar os outros mentindo que ia jogar bola no campinho. Fugindo do centro, a gente pegava um atalho no beco do Zeca bambu e disparava, punha sebo nas canelas, pois diziam que o tal beco era mal-assombrado.

Com pouco todos nós pelados, a roupa escondida nas moitas, trepávamos nas gripas dos ingazeiros em pulos de dar inveja aos macacos. Lá um dia, a brincadeira no auge, chega caladinha a mãe do Beto e encontra a roupa do santinho levando-a embora. Nossa, aquilo que foi susto! Quando já cansados de nadar saímos da água, Beto abriu um berreiro de fazer medo. Chorava, batia na cabeça, num desespero só.

E agora o que é que eu faço? Foi quando o Quinca lembrou que ali por perto tinha um pé de mamona. Benditas folhas que tamparam as vergonhas do safado que desse dia em diante ganhou o apelido de mamona.

Já as lavadeiras, o lugar preferido delas era debaixo do pontilhão onde a água marulhava cutucando as pedras. Mal o sol beliscava o cocuruto da serra, descia uma fileira de mulheres com enormes trouxas na cabeça. Muitas delas magras, desnutridas, mais dava gosto a disposição e alegria.

Era a Durvalina, a Lia, a Quinota mais a Iracema, a mais simpática. Iracema uma negra esticada e bunduda, dentes clarinhos, vivia com a saia grudada nas coxas e era quem puxava a cantoria:

“Deixa a cidade, formosa morena

Linda pequena e volta ao sertão

Vem ver a água… “

As companheiras em coro:

“E a fonte a cantar…

Chuá…chuá…”

E os sapos nas moitas: rum…. rum…. rum…. rum…. rum….

Mas, companheiro o certo é que devagar tudo muda. Minha cidade espichou, pegou prumo, aos poucos umas máquinas estranhas, barulhentas derrubaram sem dó casas antigas, quintais de muita fruta, matas, capoeiras, e o meu rio sentiu. Estranhou o sufoco das construções, um amontoado de casas onde outrora era o puro verde e passarinhos. Veio o asfalto, as fábricas, o barulho dos motores.

Tamanha foi a mudança que as águas perderam a esperteza mais mesmo assim continuaram a correr, correr, não é esse seu destino? Vendo a decadência do rio São João, não faltou quem o socorresse, vieram braços fortes, enxadas, até o poder público entrou em ação, aproveitando uma nesga de terra que sobrou entre as margens e o asfalto. Hoje, olha só que boniteza, sementes viraram árvores.

Em toda a extensão das margens são mangueiras, amoras, pitangas, coqueiros, até um enorme pé de jaca, isto sem contar as flores colorindo o chão. E o meu rio alegrinho, agradecido, pegou mais destreza, tem lugar que até se arrisca saltando alto sobre as pedras. Pronto. Contei minha história. Sem enfeite nenhum. Mas uma história verdade. Entendeu agora, companheiro, porque sempre estou por aqui?

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