Luto, infantilidade e a (in)capacidade de perder

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Fonte da foto httpsdemodelando.wordpress.com20140910saber-perder

Um menino é o dono de uma bola que ele sempre leva para o campo de futebol, perto da sua casa. Ele não tem assim tantas habilidades esportivas, nem é tão capaz de conviver em harmonia entre os diferentes dele: xinga, briga, quer jogar para um time só. Com o tempo, torna-se a última opção a ser escolhida e, por fim, não é mais selecionado. O que esse garoto faz? Toma a bola e a leva para casa. Afinal, ele se acha insubstituível e pensa que o jogo tem que acabar.

A breve história contata acima já deve ter sido vista por algumas pessoas que estão lendo esse artigo. Ela diz de uma realidade comum no comportamento de algumas crianças, mas não está muito longe de ser uma prática entre “adultos”. Isso diz muito do quanto há um treinamento, desde o berço, para que os resultados sejam sempre favoráveis às nossas aspirações: o melhor na natação, o melhor na escola, o primeiro lugar no vestibular, no concurso, e assim por diante. A intenção é boa, não é? Ser o primeiro sugere garantias, reconhecimento, até retorno financeiro, às vezes. Mas, e quando a gente perde? E quando o que a gente queria muito não acontece? O que difere a criança, ainda em formação estrutural de personalidade, e o “adulto barbado”, às vezes pai dessa criança, quanto se depara com a realidade mais difícil de administrar na vida? A gente perde.

Em um dos textos mais importantes da psicanálise – Luto e Melancolia (1914-1916), Sigmund Freud faz a distinção entre os dois termos que intitulam o artigo, referindo-se ao luto como, via de regra, uma reação a uma perda, enquanto a melancolia se trata psiquicamente de um desânimo profundamente doloroso, com a perda da capacidade de amar, podendo chegar até à expectativa delirante de punição. Na melancolia, diz Freud, “a sombra do objeto paira sob o sujeito”, ou seja, diferente do que ocorre no luto, aquele que perde não se descola daquilo que foi perdido, o que caracteriza um quadro patológico, aos olhos da psicanálise. Assim, o luto seria uma elaboração mais saudável, mesmo que dolorosa e difícil, na qual o indivíduo caminha rumo à capacidade de “escolher um novo objeto de amor” que, trocando em miúdos, significa “conseguir seguir em frente”.

De modo metafórico, o que se interpreta aqui é a relação do menino com a bola, que pode ser transposta para uma análise da nossa relação com a perda. O menino leva a bola para casa! Ele não se descola dela, pois não suporta a não satisfação do seu desejo que é estar no time, estar jogando, mesmo que não tenha capacidade e habilidade para tal, naquele momento: não suporta o fato (não fake) de não ser escolhido. E com quem essa criança aprendeu a reagir assim? Há uma máxima na psicologia: comportamento não brota. Comportamento é aprendido.

Este é um ano de muitas “bolas”, muitas “crianças no campo”, muita disputa. As “torcidas” estão aí. Mas, luto bem elaborado, de verdade, caminha rumo à aceitação da perda, rumo à constatação de que “o objeto amado” não existe mais, restando o respeito à realidade, pois, conforme considera a teoria psicanalítica, uma vez concluído o trabalho de luto, o ego fica novamente LIVRE e DESINIBIDO.

Referências:

CARONE, Marilene; FREUD, Sigmund. 1985: luto e melancolia. J. psicanal.,  São Paulo ,  v. 49, n. 90, p. 207-224, jun.  2016.

FREUD, S. (1917). Luto e melancolia. Em: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. (Vol. XIV). Rio de Janeiro: Imago, 1972.

Nilmar Silva é Psicólogo (CRP 04/47630) e Filósofo, Especializando em Sexualidade, Gênero e Direitos Humanos; Especialista em Docência do Ensino Superior e MBA em Gestão de Pessoas. Atua clinicamente com foco na Saúde Mental de pessoas LGBTQIA+.

@psicologo_nilmar

psicologonilmar@gmail.com                   

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