O PASSADO É LOGO ALI

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@toniramosgoncalves*

A maioria das biografias atualmente publicadas no Brasil são escritas por jornalistas. Embora muitas delas sejam consideradas obras literárias, as biografias criadas por profissionais da área de comunicação têm características distintas das escritas por escritores de outros gêneros. Essas narrativas frequentemente empregam recursos e técnicas típicas do jornalismo, assemelhando-se à prática jornalística cotidiana, com exceção do toque literário utilizado para tornar o texto mais envolvente e cativante. Alguns teóricos e estudiosos da comunicação e do jornalismo categorizam essas biografias como um subgênero do jornalismo literário.

Independente disso, cada autor deve escolher o percurso com o qual se sinta mais à vontade. Para escritores que estão iniciando sua jornada na escrita, a não ficção é o caminho mais acessível. Ela permite que expressem o que sabem, o que podem observar ou descobrir. Se você se destaca na escrita de não ficção, não se deixe iludir pela noção de que se trata de uma forma de escrita de menor importância.

Dentro do âmbito do jornalismo literário e das obras de não ficção, é valioso explorar o gênero das biografias, que consistem em relatos minuciosos da vida de um indivíduo. O biógrafo se utiliza de uma ampla variedade de fontes, incluindo registros escritos, depoimentos orais e informações digitais. É essencial compreender que a construção de uma biografia não depende apenas das lembranças do biografado, mas também requer o uso das memórias e registros de outras pessoas, especialmente aquelas que conviveram com o protagonista. 

No cenário brasileiro, entre muitos outros, Ruy Castro se destaca como um dos mais renomados biógrafos, notabilizado por suas obras sobre figuras icônicas como Nelson Rodrigues, retratado em “O Anjo Pornográfico”, Carmen Miranda em “Carmen: uma biografia” e Garrincha, imortalizado em “Estrela Solitária”. Ruy Castro exemplifica o compromisso e a perícia necessários para dar vida às trajetórias notáveis de personalidades marcantes, demonstrando como as biografias podem enriquecer o panorama literário e jornalístico com suas narrativas ricas e envolventes.

De acordo com Ruy Castro (2022), em sua obra mais recente, “A Vida por Escrito”, foi somente em 1361 que as biografias, no sentido que lhes atribuímos hoje, começaram a contemplar figuras recentemente falecidas. Um exemplo notável desse fenômeno foi a obra “Vida de Dante”, escrita por Bocaccio, aproximadamente quarenta anos após o falecimento do poeta. Essa pode ser considerada, possivelmente, uma das primeiras biografias literárias. O notável Bocaccio também é creditado como o autor da primeira biografia de uma mulher, em 1374. Um ponto de virada fundamental no desenvolvimento do gênero biográfico ocorreu com a publicação de “Le Morte d’Arthur” (1485), de Thomas Malory. Essa obra marcou o início do ciclo de biografias romanceadas, desempenhando um papel crucial na evolução do gênero.

Fernando Sabino, que completaria 100 anos em 2023, também se aventurou na arte da biografia com o livro “Zélia: Uma Paixão” (1991). Com sua formação literária e jornalística, realizou a tarefa de escrever uma história verídica sobre Zélia Cardoso de Mello, que na época era ministra da economia no governo Collor e amplamente rejeitada pelos brasileiros devido ao confisco da poupança. Embora contenha elementos literários e alguma ficção, devidamente assinalados pelo autor, a obra, concluída em 45 dias, pode ser considerada de natureza jornalística, devido à inclusão de nomes e datas, à organização cronológica dos relatos, à simplificação de termos técnicos da economia para torná-los mais compreensíveis, e outros aspectos que refletem práticas jornalísticas comuns.

É importante ressaltar que Fernando Sabino recebeu críticas injustas por este livro, resultado de inúmeras horas de conversas. No livro, ele explora tanto o delicado momento econômico do país quanto a vida pessoal incompreendida de Zélia, uma espécie de “Cinderela às avessas” que teve um romance conturbado com outro membro do governo, Bernardo Cabral, um jurista que foi duramente criticado por Saulo Ramos no livro “O Código da Vida”.

Na época de seu lançamento, Fernando Sabino foi acusado de oportunismo, uma alegação infundada para alguém que nunca agiu de tal forma. Em sua defesa, é digno de nota uma carta de um desembargador do Tribunal de Justiça de Minas que destaca as três nobres ações de Fernando Sabino: a primeira foi a devolução da titularidade de um cartório que ele havia recebido de Benedito Valadares, o governador de Minas, quando se divorciou da filha do político. A segunda foi quando Sabino renunciou aos direitos autorais do livro “Zélia, uma paixão”, que vendeu 200 mil exemplares em poucos meses após o lançamento. A terceira foi quando, após receber o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras (ABL) por sua obra completa, ele doou o valor recebido para instituições de caridade.

Em uma coluna recente no jornal O Globo, o colunista Joaquim Ferreira dos Santos argumentou que, neste centenário, é chegada a hora de reabilitar Fernando Sabino, desfazendo o cancelamento injusto que paira sobre sua reputação e restaurar o reconhecimento que ele merece.

* Toni Ramos Gonçalves

Escritor, editor, ex-presidente e um dos fundadores da Academia Itaunense de Letras – AILE. Graduando em História e Jornalismo.