Que história é essa? Dona Jesuína – Parte I

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Sílvio Bernardes

A Dona Jesuína me chama para perto dela, num banco de madeira onde está acomodada com indisfarçável pachorra: “Silo (ela me chama assim), senta aqui que ocê num tá com pressa e eu também perdi a que eu tinha tem um muncado de tempo, desde que o Ataliba se foi dessa pra melhor. Que o ‘coisa ruim’ o tenha nos quintos…!”. Fala assim e dá aquela gaitada. “Deus que me perdoe, crendeuspai!”. A Dona Jesuína mora no asilo há muito tempo e todos os sábados encontro-me com ela e com os demais que vivem naquela casa de idosos. A instituição, por assim dizer, está instalada num ponto estratégico da cidade, ao lado da capela e do velório municipal e acima do cemitério central – ah, e coladinha no quartel da Polícia Militar. Alguns dos idosos podem ver que essa casa foi mal planejada, do ponto de vista de localização, embora ali próximo funciona o “tirdeguerra” e uns rapazes bonitos estão sempre chegando e saindo, envergando sua farda verde-oliva impecável, cheios de risos e energia juvenil – e entram naquela casa trazendo um agrado para aqueles velhinhos simpáticos (alguns nem tanto, coitados!). Outros dos asilados da instituição nem põem reparo nessas coisas de vizinhança e ficam na janela espiando, horas a fio, a movimentação de povo no velório – chorando, contando causos e até rindo – e a falta de movimentação de gente no cemitério. Dona Jesuína não liga pra nada disso, nem na janela gosta de estacionar sua pequena pessoa. Ela é uma senhorinha de pouca estatura, meio roliça, morena dos lábios arroxeados. Prefere caminhar – às vezes com muita dificuldade por causa do joelho enferrujado (ela que fala) – pelos corredores e pátio do asilo, pitando seu cigarrinho de palha e trocando um dedinho de prosa com os amigos que também moram ali e que vão com muita frequência ao seu lar temporário.

Tenho com a Dona Jesuína uma amizade de vários anos, desde quando comecei a frequentar aquela instituição por causa de um curso de teatro que ali se realizou. Lá dentro tem um ‘teatrinho de bolso’ e por algum tempo funcionou o Ponto de Cultura Casa do Idoso, com a realização de alguns cursos, espetáculos teatrais, de música e de dança para uma plateia pequena e seleta. Gosto de prosear com essa senhorinha, com a Dona Naná, com a Dona Elza e com o Seu Jadir também.

A Dona Jesuína também frequentava, de vez em quando, o teatrinho do Ponto de Cultura para ver o que aquele povo estava fazendo ali. Ficava no meio das cadeiras, assuntando, arrastando a perna amparada em sua indefectível bengala de metal. Depois, dava vontade de pitar (ou de mijar), saia de fininho, meneando a cabeça branca e o vestidinho florido.  Logo em seguida aparecia lá na frente, numa conversa animada com o seu Tunico Preto, com a Genoveva do Tião, numa arenga – de graça ou de desgraça – com a Dona Cleide, a enfermeira-chefe; ou numa arrelia com o Zeca do Carrinho. Nas conversas amenas que tenho com ela, Dona Jesuína me fala do seu mundo que eu desconheço. Lugares e tempo muito distantes, que devem ter existido de verdade lá para os lados de Crucilândia, Dom Silvério, Mundéu, Bibocas, Campina Verde, Coqueiros, Gambá… Fala-me de Santa Manoelina de Coqueiros (e de seus milagres prodigiosos), de casas mal assombradas, de suas irmãs gêmeas Clodomira e Maria Almira – uma delas ruim que nem cobra; outra, boba que só vendo, com cabeça de galinha – e o irmão, Dado, “que é um coitadinho que sofreu um colosso na mão do pai, mas que agora tá lá no céu”.  

Dona Jesuína casou-se com o Ataliba de Çãozinha do Zeca Viriato. De primeiro, ela diz, não queria casar, nada de constituir família. Queria é aproveitar mais os tempos de “liberdade”, nos folguedos e arrasta-pé das festas no Mundéu e na Boca da Capoeira. Queria continuar dançando, rodopiando, arrasando o coração dos moços da redondeza, que ficavam gamadinhos por ela. A pequena notável comparecia a esses festins muito cheirosa, sestrosa, com fita no cabelo e um vestidinho rodado um pouco abaixo do joelho. Dona Jesuína, por esse tempo era a Zuzu do  Tóim Catireiro,  a mais animada das moças nos bailes de sanfona, principalmente na festa da padroeira no mês de maio. Sua dança, seu gingado e sua alegria inocente causavam olhares atrevidos dos rapazes e uns bons beliscões da mãe Vicência, sempre vigilante. 

Eita, roxinha  danada, que pisa e machuca os corações enamorados!!!

(Continua…)