Que história é essa? Manhã de carnaval

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Sílvio Bernardes

É sábado de carnaval. Manhã de carnaval na Praça da Matriz. Se não fosse a movimentação de alguns foliões da banda “Esplendor e Glória” organizando suas atividades para a tarde daquele dia, muitos nem se davam conta de que aquela era uma manhã de carnaval. Eu mesmo nem somava, para usar uma expressão de minha avó Zenóbia, em referência ao estado de alienação ante uma situação qualquer. Há alguns anos não tenho mais vontade de brincar carnaval, talvez nem ver de perto o furdunço de um carnaval e nisso não vai nenhum falso moralismo e, muito menos, problemas decorrentes da idade. Do alto dos meus sessenta anos estou apto e com muita disposição para atividades bastante intensas que exigem esforço físico, interação com os zoto, até barulho, já que sou professor e uma sala de aula, a rigor, não é nenhuma paz de catedral. Não me apetece mais esse carnaval de agora que pulula por aí. Aprecio quem gosta, quem brinca, gente de qualquer idade. E desejo de verdade que se divirtam. Aproveitem. Carpe die!

Então, naquele sábado de carnaval, na Praça da Matriz, eu procurava outras coisas, o ambiente com o qual me encontro todos os sábados de manhã, o caminhãozinho-palco do João José com seus artistas ecléticos, o Maurício Paulino com o seu Clube da Vitrola, as rodinhas de conversa que falam de política, de futebol e da vida alheia, a turma da esquerda que levanta suas bandeiras em nome de uma luta social do momento, como a “tarifa zero” para o transporte coletivo. Não encontrei ninguém. A praça era a mesma. O sol brilhava. Havia árvores e flores e, até, gente que caminhava por ali. Sentei-me em frente à igreja Matriz de Sant’Ana e estava acontecendo um casamento. Meu Deus, um casamento! Pode haver algo mais inusitado, para não dizer surreal, do que um casamento em plena manhã de um sábado de carnaval? Fiquei olhando aquele povo em longos vestidos e em estreia de traje de passeio completo. A noiva de branco, levemente nervosa, no meio de véu e grinalda. E buquê. E fotos profissionais. E afagos sorridentes. Os pais, entre alegres e nostálgicos, tentando se encaixar naquelas cenas. Lá dentro da igreja a música prenunciava a cerimônia. Larguei tudo isso para acompanhar à distância um senhor de idade que passava, carregando uma sacola de remédios. Ela saíra de uma farmácia ali ao lado da antiga prefeitura e caminhava próximo do fórum –  alheio às cenas que acabei de descrever – em sentido ao Automóvel Clube. Mas, também caminhava, devagar, distante do sábado de carnaval que ninguém dava conta a não ser os integrantes da “Esplendor e Glória”. Fosse qualquer pessoa eu nem notaria, mas aquele senhor era especial porque num passado não muito distante eu o via, em outros carnavais, naquela mesma praça,  envergando uma fantasia colorida do bloco “Pomba Rolla”. E, mais que um folião, ele era um dos “puxadores” e também compositor, dos sambas-enredo do bloco: “Pomba Rolla voou atrás da mulherada!”. A criatividade e o bom humor tomavam conta da moçada do “Pomba Rolla” em todos os carnavais que aconteceram na Praça da Estação, na Silva Jardim e na Praça da Matriz e aquele rapaz era um intrépido pomba-rollense que não estava nem aí pra coisa alguma. O senhor de idade de agora, que caminha sem dificuldade, mas com certa vigilância para não tropeçar nas irregularidades da via pública, se juntava a outros foliões naqueles anos de 1970/1980, cheios de sons e fúria. Eram jovens, irreverentes. O carnaval era o grito de alegria daquela rapaziada desatinada que um dia eu, timidamente, também fiz parte.

Agora, um pouco nostálgico, busco nos versos dos poetas Vinícius de Moraes e Carlinhos Lyra a minha composição para esta manhã de carnaval: “Acabou nosso carnaval/ Ninguém houve cantar canções/ Ninguém passa mais, brincando feliz/ e nos corações saudades e cinzas foi o que restou/ Pelas ruas o que se vê/ é uma gente que nem se vê/ Que nem sorri, se beija e abraça/ e sai caminhando, dançando e cantando/ cantigas de amor”… (Marcha de Quarta-Feira de Cinzas, 1963).