@toniramosgoncalves**
A última vez que me lembro de ter chorado foi quando meu avô não me reconheceu. Foi na frente de toda a família. Ele já estava começando a perder a lucidez. Fomos visitá-lo na casa de uma tia, com quem ele mora. Assim que entrou na sala de estar, apontou para mim e perguntou quem eu era. Logo eu, seu neto preferido. Não consegui conter as lágrimas, e todos choraram junto, exceto ele, que olhava o rosto de cada um, tentando entender o motivo daquela choradeira toda, sem saber que ele mesmo era a razão.
Antes disso, a outra ocasião na qual chorei foi… Bem, deixa pra lá. Voltando a meu avô, todos nós, sem nada combinado, passamos a visitá-lo com uma frequência maior. Acho que toda a família percebeu que em breve ele iria nos deixar. Nos dias em que o visitava, eu ouvia suas queixas de como a vida não havia sido fácil. E ele sempre contava a mesma história. Usava sempre as mesmas palavras, como um ator que noite após noite recita o mesmo texto no palco:
– Estes empresários e políticos não se preocupam com a cultura da cidade, não preservam sua memória, não respeitam o passado e suas tradições. Só pensam em lucrar!
E, então, meu avô discorria sobre sua infância e juventude. Eu já sabia tudo de cor, mas paciente escutava tudo aquilo de novo, pois queria aproveitar ao máximo o convívio com ele, que somente em raros momentos lembrava que eu era seu neto predileto. Ele me contava dos dias em que estudara na mais antiga e remanescente Escola Municipal Dr. Augusto Gonçalves, que ele dizia ter sido poupada da sanha megalomaníaca por milagre. Narrava passagens agradáveis e curiosas que vivera no Largo da Matriz de Sant’ana, que também fora poupada, porém irremediavelmente transfigurada. Como se estivesse seguindo um roteiro, ele se lembrava de seu pai, que trabalhara no cinema Cine Rex. Meu bisavô morreu menos de um ano depois da inauguração do edifício comercial. Meu avô dizia que fora de desgosto por ter tido o cinema demolido para a construção do prédio. A vida deles transcorria ao redor do cinema, faziam de tudo: eram encarregados das tabuletas, baleiros, faxineiros, projetores de filmes e porteiros. O passado da família tinha sido feito pó, e eles foram obrigados a se mudarem para outras bandas, onde suas vidas tiveram que recomeçar, a arrumarem outros locais para preencherem suas existências. Ao que parece, meu bisavô havia fracassado naquela empreitada.
Cada vez que meu avô falava do passado, da destruição e do recomeço, me vinha à cabeça um passado recente com o qual eu lutava sem sucesso para enterrá-lo. Eram sempre as mesmas imagens que vinham me atormentar. Dando as costas para mim, Alice se dirige para a porta carregando suas malas. A porta se fecha atrás dela, que nem se digna a me lançar um derradeiro olhar. Corro para a janela. Aguardo que ela saia do prédio na esperança de que desista. Vejo-a entrar no carro de seu irmão, que me olha com a face moldada pela tristeza. O carro arranca, e eu permaneço poucos minutos sem qualquer reação. Foi como se eu tivesse assistido a uma cirurgia em meu corpo sem sentir nada. Então, o efeito da anestesia passou, e desandei a chorar. Sim, isso foi uma semana antes da primeira vez que meu avô não havia me reconhecido. Alice também havia desfigurado minha paisagem, mas eu prometi a mim mesmo que não iria mais chorar por causa daquilo.
Hoje, pouco mais de um ano e meio depois, meu avô ainda está vivo. Ele alterna momentos de lucidez com puro desvario, mas de resto está saudável. Estou no centro da cidade, voltando da hora do almoço com meus colegas. Ironicamente, trabalho no mesmo edifício comercial que construíram após a demolição do cinema. Um dos colegas começa a cutucar todos nós, apontando para pessoas as quais logo identifiquei como curiosos ao redor de um idoso que fala e gesticula de forma teatral em cima de uma das pedras que ornamenta a fonte luminosa. Imediatamente, disparo em direção a ele. Ainda ouço meus colegas me chamando e perguntando se eu havia ficado louco.
Alcanço o grupo de pessoas. Ouço parte do que é dito pelo homem no qual prestam atenção:
– … e foi daqui até onde seus olhos alcançam que tudo foi pro chão.
Aproximo-me dele. Assim que me vê, ele solta uma exclamação carregada de surpresa e afeto:
– Meu neto! – vira-se para sua plateia particular e aponta para mim. – Pessoal, este é meu neto querido!
Interrompo-o, colocando meu braço em volta de seus ombros e o afasto do grupo. Algumas pessoas riem dele.
–Vô, o que o senhor está fazendo aqui? Quem deixou o senhor sair? – pergunto com voz esganiçada.
– Ninguém. Minha irmã bobeou. Enquanto ela cochilava, eu saí. E por que tanto espanto? Eu sou um adulto, sei andar por aí.
Continuamos a caminhar sem rumo definido. As pessoas olham com curiosidade para nós. Meus olhos se umedecem. Meu avô pergunta:
– Por que você está chorando? Meu Deus, eu só vejo você chorar!
Antes que eu possa responder, me faz outra pergunta, como as que fazia em seus ataques de lucidez desatualizada:
– Cadê sua esposa? Faz tempo que não a vejo.
Bem, aí é que as lágrimas começam a jorrar de verdade. Não posso responder às perguntas do meu avô. Não porque não consiga falar, mas sim pela vergonha que ele acabou de passar, pela alegria de vê-lo momentaneamente lúcido, pela constatação da efemeridade de tudo, pela lembrança de Alice. Sim, eu poderia articular palavras, porém não saberia dizer exatamente por que estava chorando naquele momento. É ao mesmo tempo por tudo e por nada.
* Conto finalista do Prêmio Selo Flip 2023, em Paraty-RJ
** Toni Ramos Gonçalves
Professor de História, Escritor, Editor, ex-presidente e um dos fundadores da Academia Itaunense de Letras – AILE. Graduando em Jornalismo.