Sete Perguntas para Valdeci Antônio Ferreira, criador da APAC de Itaúna

“São 40 anos chafurdando as lamas das prisões para arrancar as vidas que aí se encontram e hoje são milhares de homens e mulheres devidamente inseridas no seio da sociedade”

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O salão do regime fechado da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados – APAC de Itaúna – esteve lotado, na celebração dos quarenta anos de apostolado nas prisões de Valdeci Ferreira e do lançamento do seu livro “Abrindo as Portas das Prisões”, que conta um pouco dessa trajetória à frente de um sistema prisional que privilegia os direitos humanos e trabalha pela recuperação do homem.

Valdeci Antônio Ferreira, itaunense adotivo, nasceu em Itapecerica (MG), é advogado, teólogo e atualmente responde como diretor do Centro Internacional de Estudos do Método APAC, que se localiza em Itaúna ao lado da sede da FBAC (Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados). Em entrevista ao Jornal S’PASSO ele fala da APAC, dos seus companheiros de ideal e das dificuldades que vivenciaram para implantação dessa obra em Itaúna.

  1. Fale-nos de sua trajetória com a política prisional, que deve ter iniciado muito antes de 40 anos atrás? Como foram os primórdios desta atuação?

A APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados) nasceu em São José dos Campos (SP), sob a liderança do Dr. Mário Ottoboni, no ano de 1972. Nós descobrimos a experiência das APACs através de uma bibliografia do Dr. Mário Ottoboni e trouxemos essa experiência revolucionária para a comarca de Itaúna. Mais ou menos no ano de 1987, três anos após as atividades pastorais na cadeia pública de Itaúna. Eu iniciei visitando a cadeia e descobri que havia outras pessoas que faziam o trabalho que eu realizava. Nós reunimos aquele grupo e fundamos a Pastoral Carcerária na cidade de Itaúna.

  • Quem esteve junto com você nos primeiros passos dessa caminhada? Quem hoje tem segurado as principais demandas deste trabalho?

Éramos eu, professor Marco Elísio, Dr. Inácio Campos Cordeiro, Dra. Dayse, padre Luís Carlos, padre José Neto, irmã Gorete, irmã Sílvia, Míriam, Valéria, Dona Maria Augusta, Dona Odília, Marquinhos… era um grupo grande que aos poucos foi ganhando forma, representando vários segmentos da sociedade itaunense. Fizemos um trabalho de pastoral durante uns três anos, construímos pátio de sol na cadeia, fizemos ambulatório médico, biblioteca, construímos beliches, colocamos caixas d’água, pintamos a cadeia. Era um trabalho muito intenso de pastoral, de assistência material, mas a impressão que se tinha era de que tudo aquilo que nós construíamos durante o dia, era destruído à noite. O estado de abandono, de miséria, de desleixo, era algo permanente que a gente não conseguia mudar. E foi justamente neste contexto que a gente descobriu, como eu já falei, a experiência das APACs, que teve o seu nascedouro em São José dos Campos. Após conhecer essa experiência, voltamos com essa convicção de que poderíamos ter um projeto semelhante em Itaúna e, como primeira medida, realizamos um seminário de estudo sobre a metodologia e convidamos o Dr. Mário para ser o conferencista. Foram dois dias de seminário, com pouquíssimas pessoas no auditório e entre essas poucas pessoas nós tínhamos o Dr. Paulo Antônio de Carvalho e o Dr. Ivo Nogueira Gontijo, ambos juízes da comarca, que, embora não convencidos totalmente, passaram a apoiar o nosso trabalho. Adquirimos um terreno no Belvedere, doado pela Prefeitura, pelo prefeito Francisco Ramalho, desenvolvemos um projeto arquitetônico e iniciamos uma série de campanhas para a construção do nosso centro de reintegração social. Depois de muita luta, muitas campanhas, muitas barraquinhas, quermesses, bazares de pechincha, almoços, rifas, conseguimos reunir algum recurso para o início das obras. Depois de mais de dois anos, trabalhando em finais de semana em mutirões, conseguimos a primeira etapa, destinada aos presos do regime aberto que, na época, cumpriam pena na cadeia. Eles saíam durante o dia para trabalhar e voltavam à noite. O Dr. Paulo e o Dr. Ivo conferiram à APAC essa atribuição e, enquanto fazíamos essa experiência pioneira, as obras tinham continuidade. Quando o regime semiaberto estava pronto, tivemos uma grande rebelião na cadeia pública, não havia onde colocar os presos, que foram inicialmente designados para comarcas vizinhas, com o prazo de um mês para retornarem. Foi quando o Dr. Paulo e o promotor, o Dr. Franklin Caldeira, perguntaram se a APAC poderia abrigar esses presos. Na APAC, onde tinha portas e janelas de madeira, foram colocadas grades e dentro de trinta dias aqueles presos rebelados que tinham sido transferidos para comarcas vizinhas, foram levados para a APAC. Então, no ano de 1996, nascia, de maneira improvisada e inusitada, a segunda APAC sem polícia, porque agora tínhamos o regime fechado, semiaberto e o aberto que já era cuidado pela APAC.

  • Num balanço dessas quatro décadas à frente do movimento pelos direitos humanos e na defesa dos direitos dos condenados, quais foram os maiores desafios? E as melhoras conquistas?

 Durante um ano foi feita essa experiência-piloto, com muitas dificuldades e naquele ano mesmo o Dr. Paulo convocou a sociedade, foi criado o SOS Cidadania, na época dirigido pelo Dr. Tarcísio e neste período foi criado um novo centro de reintegração social, inaugurado em setembro de 1997, no Parque Jardim Santanense. No dia da inauguração, quando todos pensavam que o juiz iria entregar as chaves para a Secretaria de Justiça, ele as entregou para a APAC. Foi realmente um gesto de muita confiança e, porque não dizer, de muita ousadia. Em retaliação, poucos dias depois o estado suspendeu o fornecimento de alimentação; e durante dezoito meses os voluntários iam de casa em casa, iam nos sacolões pedindo restos de verdura. Foram tempos difíceis, o padre Amarildo tinha uma liderança muito grande na cidade e colaborou enormemente nesse período de crise, Dra. Josete, que era presidente da APAC na época, uma grande mulher. E, também, uma plêiade de homens e mulheres generosos que não mediram esforços. Depois de grande embate político foi celebrado uma parceria que permitiu o fornecimento de alimentação para os presos.

  • E, falando do início das atividades, conte-nos mais como se deu a instalação definitiva da primeira APAC em Itaúna?

Já no final de 1997 estava acontecendo em Minas Gerais, a CPI carcerária, que fez uma verdadeira devassa no sistema carcerário. A Comissão Parlamentar era dirigida pelo deputado João Leite e tinha como relator o então deputado Durval Ângelo e a última visita que fizeram foi na APAC de Itaúna. Foi exatamente ali que eles vislumbraram um rastilho de esperança, pois fizeram constar no relatório final que a única experiência positiva que encontraram no sistema carcerário de Minas Gerais era na APAC de Itaúna. E desde então, ela tornou-se conhecida em todo o país e outras surgiram em várias partes do país. Hoje, nós estamos com 69 APACs em oito estados da federação, totalizando quase 7 mil homens e mulheres que cumprem pena nas APACs. Temos diversas outras instituições em diversos estágios de implantação. E tudo isso só foi possível graças ao apoio incondicional do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, do governo de Minas, da Procuradoria, diversas organizações parceiras, instituições que permitiram que a APAC pudesse ser de fato uma alternativa viável que estamos oferecendo aos estados do Brasil e também para outros países, lembrando que a APAC se encontra em 12 países.

  • Qual é a sensação de chegar a 40 anos de um trabalho voluntário e este ser conhecido como “apostolado”? A APAC reinventou o sistema carcerário no país e em Itaúna também?

Celebrar 40 anos de apostolado nas prisões é fazer memória nesses tempos difíceis, tempos de aridez, de perseguições, de ameaças, de muitas renúncias, muitos sacrifícios, tempos de angústias, de solidão, de dúvidas, de indecisões. Mas é também tempo para celebrar as muitas conquistas, muitas vitórias, em especial as muitas vidas restauradas. São 40 anos chafurdando as lamas das prisões para arrancar as vidas que aí se encontram e hoje, são milhares de homens e mulheres que passaram pela APAC e através de uma metodologia, de uma terapêutica penal própria e pela graça de Deus fizeram uma experiência de reencontro consigo mesmas, de mudança de mentalidade. E hoje se encontram devidamente inseridas no seio da sociedade como homens e mulheres de bem, que contribuem para o crescimento do nosso país. Então, celebrar 40 anos é celebrar essas vitórias, essas milhares de vidas restauradas, essas milhares de famílias reconciliadas e de comunidades pacificadas.

Certamente que as APACs, não obstante os bons resultados oferecidos, tais como a redução drástica da reincidência, que hoje tem uma média de 70 a 85% no país, e nas APACs é inferior a 15%, não obstante os bons resultados no tocante a redução de custos, uma vez que um preso na APAC custa 1/3 quando comparado ao custo per capta do sistema comum, ausência de rebeliões, de motins. Não obstante os bons resultados, a gente afirma que a APAC não é a solução para o problema do crime, da violência, não é um modelo de franquia que você pode replicá-lo aos milhares, não é um modelo de prisão privada, até porque a lógica das prisões privadas é o lucro e das APACs é a recuperação de vidas. A APAC não é uma máquina de recuperar pessoas, onde você coloca a pessoa de um lado, aperta um botão e ela sai recuperada do outro lado. É uma alternativa viável. Não digo que reinventa o sistema, mas propõe que a pena não tenha apenas a finalidade punitiva, mas que possa ter a finalidade de recuperação.

  • Mais que punir o criminoso, a proposta maior é recuperar o homem. Esta é a essência do método, né?

A pena no Brasil tem essa dupla finalidade, punir e recuperar; mas, infelizmente, como o sistema prisional funciona, cumpre apenas a primeira finalidade que é punir. E se esquece da sua essência que é a recuperação. Então, a APAC tem essa finalidade, de punir porque a pessoa que cometeu o crime tem que responder diante da sociedade pelo mal que ela fez, mas terá os seus direitos respeitados, sua dignidade e ali poderá refazer sua vida.

7.   Para finalizar, qual é a razão de Itaúna ainda não ter conseguido tirar do papel o projeto da APAC juvenil? Quais são os entraves para que isso se realize?

A gente afirma sempre que não se cria a APAC por decreto, pelo desejo desta ou daquela autoridade, desta ou daquela pessoa. A APAC é o resultado da sociedade civil organizada, que toma consciência do problema e resolve apontar um caminho de solução. Eu diria que o projeto da APAC juvenil não se desenvolveu em Itaúna, digamos que não saiu do papel, porque a sociedade civil organizada ainda não tomou consciência desse problema; no dia que se organizar, levantar a bandeira e levar adiante, isso vai acontecer. Faltam lideranças que possam levantar essa bandeira, a exemplo do que aconteceu na comarca de Frutal, onde nós temos a APAC masculina, a APAC feminina e a primeira APAC juvenil do mundo.