UM DIA SEREMOS SAUDADE

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@toniramosgonçalves*

Quase sempre é assim: as questões jurídicas sempre recaem sobre mim, devido à minha profissão de advogado. Entre os sete irmãos, sou o quinto filho, o caçula dos homens. Após a morte de nosso pai, iniciou-se um tumulto por parte de alguns herdeiros, ansiosos pela divisão da herança. A tensão só aumentou nos meses seguintes, em meio a um ambiente carregado de palavras não ditas. Enfim, consegui negociar a venda da fazenda a um produtor rural que, persistentemente, apresentava ofertas cada vez maiores ao meu pai a cada visita.

Com um peso no coração, decidi ver a fazenda pela última vez, antes de assinar os documentos. Depois de duas gerações em poder da família, minhas árvores, meu riacho, meus campos passariam às mãos de estranhos. Sentia-me uma criança retornando ao lar, após longa ausência, cheio de ansiedade e ao mesmo tempo com um sentimento de culpa.

Desci do carro debaixo de um sol impiedoso. O calor e o mormaço daquele lugar continuavam o mesmo. Por um instante, tive a sensação de que papai ia sair de dentro da casa e me receber sorridente na varanda. Lembrei-me de minha última visita, alguns meses antes de seu falecimento. Ele tinha os cabelos, a barba por fazer e as sobrancelhas brancas, da mesma cor da camisa, contrastando com a pele queimada pelo sol. Suas mãos trêmulas, magras e ásperas, mantinha o aperto forte.

A casa da fazenda permanecia como nos velhos tempos, com uma varanda que se estendia ao seu redor. O curral, localizado nos fundos, era o lugar onde antigamente, se ordenhava as vacas nas manhãs. Além disso, existia um galpão que servia tanto para armazenar ferramentas quanto para funcionar como garagem.

Sentado no velho banco de mogno na varanda, eu escutava o passado. Papai adorava aquele lugar. Sempre ao pôr do sol, ia contando as histórias das pessoas que viveram ali. Ele sabia das tristezas e alegrias plantadas em cada pedacinho de chão.

– Seus avós se casaram quando ambos tinham dezessete anos, às vésperas do Natal. – relembrava ele enquanto enrolava o cigarro de palha. – Saíram da igreja numa carruagem branca, novinha em folha, e vieram viver aqui. Tiveram oito filhos. Trabalharam arduamente durante anos, plantando verduras e criando vacas leiteiras e, aos poucos, foram comprando as terras vizinhas.

Minutos depois, ao entrar na casa, encontrei-me num interior mal iluminado, deparando com a foto antiga de casamento de meus avós, numa moldura oval e escura, pendurada na parede. Com a ajuda da lanterna do meu celular, notei uma certa semelhança entre mim e meu avô. Olhei demoradamente todos os cômodos. Restavam poucos móveis, todos empoeirados. Pairava no ar um forte odor de mofo e poeira.

Papai sempre viveu na fazenda, mesmo depois de nos mudarmos para a cidade, para estudar. Era um homem tradicional, de velhos costumes; diferente da maioria, era um homem bom e muito direito com seus compromissos. Após ingressarmos na faculdade, mamãe veio morar novamente com ele. Sua rotina consistia em vagar pela fazenda orientando os poucos trabalhadores que mantinha: ora cuidava da horta, ora alimentava os porcos. Mas seu lugar favorito era o pomar, onde passava a maior parte do dia.

Mesmo depois da morte de mamãe, que uma noite foi dormir e não acordou mais, ele continuou morando sozinho. Nunca mais foi o mesmo. Foi vendendo as vacas, os porcos, acabando com as plantações, até a fazenda ficar deserta.

Meus irmãos raramente apareciam. Eu era o que mais o visitava. Meus filhos e esposa nunca me acompanhavam. Alegavam que o sinal de Internet não era bom. Essa geração, incapaz de viver desconectada!

No galpão encontrei o velho fusca azul, ano 1965, que enferrujava. Era o xodó de papai e fazia parte da família. Quando nasci, ele já estava lá. Lembrei-me do passeio que fizemos juntos na minha última visita. Papai e eu saímos da fazenda e fomos dar uma volta no povoado. Ele queria fazer uma visita ao túmulo de mamãe. Na maioria das vezes, somente a presença do outro era suficiente. Palavras não eram necessárias. Mesmo com o fusca aos solavancos bastava a satisfação de ouvir o estalar do cascalho sob os pneus.

Olhando para o céu, papai viu que nuvens se concentravam a oeste, e o vento alterando um pouco a direção.

–Vem temporal aí – previu.

Eu concordei com um sorriso, quando dois grossos pingos de chuva bateram no para-brisa. Não demorou muito e desabou um temporal. Decidimos parar debaixo de um velho galpão em ruínas. E papai veio com mais histórias:

– Se você for naquela direção – disse apontando na direção de uma plantação. – Atravessando aquele milharal, você irá encontrar um muro erguido pelos escravos e as ruínas de uma velha igreja queimada e, pouco mais adiante, uma árvore centenária com uma inscrição entalhada no tronco com as iniciais minha e de sua mãe. Brincávamos sempre de “pique-esconde” naquele lugar. Foi lá que demos o nosso primeiro beijo.

Passada a chuva, já no cemitério, observei à distância papai em frente ao túmulo de mamãe sussurrando algo aparentemente muito íntimo. E quando voltávamos para a fazenda sempre repetia a mesma frase:

– Sabe filho, essa boa gente pode estar embaixo da terra, mas enquanto nos lembrarmos de suas histórias, de certo modo, eles estarão conosco.

Sai do galpão de ferramentas e fui para o pomar com os olhos marejados. O enterro de papai teve de ser rápido. Foi ali, no seu local favorito, que o encontraram morto. Um dos amigos notou sua ausência na noite do truco, realizada todas as segundas-feiras num bar do povoado. Ele nunca faltava. Disseram que havia dois dias que ele tinha falecido.

Permaneci ali, imóvel e em silêncio, sentindo a saudade corroendo o peito. Então, o celular vibrou no meu bolso da calça. No visor, apareceu o nome de minha irmã caçula, a mais ansiosa pela venda da fazenda. Ignorei a chamada e comecei a caminhar sem pressa, sobre o chão poeirento e cheio de folhas secas.

* Toni Ramos Gonçalves

Professor de História, Escritor, Editor, ex-presidente e um dos fundadores da Academia Itaunense de Letras – AILE. Graduando em Jornalismo.