A ESCRITA QUE OUSA E INOVA

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@toniramosgoncalves

Quem me conhece sabe do meu enrugar de testa em relação à rigidez das coisas. Não aprecio o engessamento imposto pelo tradicionalismo e conservadorismo no mundo atual, onde as diversidades e pluralidades ainda estão em pleno florescimento. Minha natureza inquieta me leva a pensar de maneira inovadora, fora dos padrões convencionais, proporcionando-me uma ampla gama de oportunidades e liberdade. Como disse Manoel de Barros: “Quem anda no trilho é trem de ferro. Sou água que corre entre pedras – liberdade caça jeito.”.

É claro que em uma sociedade, para garantir uma convivência harmoniosa, são necessárias regras; contudo, é crucial reconhecer que essas normas não devem cercear o livre pensamento e a expressão de ideias, mantendo sempre o direito e o respeito pelo próximo. Mas para inovar, é preciso ousar.

Na história da literatura, percebemos que, um dia, os autores clássicos romperam regras e costumes. A inovação sempre desempenhou um papel fundamental. Ao longo do tempo, testemunhamos a presença de escritores que transcenderam as fronteiras do convencional, provocando não apenas surpresa, mas também intensas críticas por parte dos leitores e críticos literários habituados aos estilos narrativos tradicionais. Essas figuras ousadas e visionárias desafiaram as normas estabelecidas, abrindo novos horizontes para a evolução dinâmica do cenário literário.

No século XX, mais precisamente em 1930, encontramos a jovem Raquel de Queiroz, com apenas dezenove anos, que causou um impacto significativo com seu primeiro romance intitulado “O Quinze”. Vivendo em uma sociedade brasileira marcada pelo machismo, mesmo em meio a uma era de transformações e processos de modernização, sua chegada à cena literária foi surpreendente, uma vez que desafiou as convenções da sua época. Graciliano Ramos observou que sua obra “provocou agitação e alguma desconfiança”, uma vez que as mulheres deviam se limitar aos sonetos. Esse feito notável gerou uma série de críticas por parte dos incrédulos, incluindo o crítico Beni Carvalho, que descreveu o livro como “A tragédia da seca em um romance escrito por uma mulher”.

Para aqueles que ainda não estão familiarizados com sua história literária, Raquel de Queiroz foi a primeira mulher a se tornar membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), eleita em 1977. Isso representou um rompimento com uma tradição de misoginia que durou oito décadas, desde a fundação da instituição em 1897 por um grupo de intelectuais notáveis, incluindo Machado de Assis e a escritora Júlia Lopes de Almeida. Vale destacar que Júlia Lopes de Almeida foi impedida de ocupar uma cadeira na academia e teve que cedê-la para seu marido, o poeta português Filinto de Almeida.

Recentemente, na seleção de semifinalistas para o Prêmio Jabuti 2023, meu destaque é o ótimo livro “Via Ápia” (2022), escrito por Geovani Martins, que também “causou sensação” ao conquistar o leitor pela sua linguagem inventiva, meticulosamente construída, e pela originalidade que tem garantido ao autor um lugar distinto na literatura brasileira desde 2018, quando lançou “O sol na cabeça”.

Quando li este livro, confidenciei aos mais próximos que ele seria um dos finalistas do prêmio. Como sempre alguns “intelectuais” discordaram. Mas a obra vai além de um vocabulário inovador. Geovani Martins desenvolve um estilo próprio, empregando uma forma de expressão típica dos jovens da periferia, que desafia as convenções do português padrão (algo que, inevitavelmente, incomoda alguns). Essa linguagem se acentua nos diálogos, mas também se faz presente nas falas do narrador, que, mesmo narrando em terceira pessoa, não adota uma posição neutra, identificando-se completamente como um dos personagens apresentados.

A polêmica ganha maior relevância quando a maconha surge como um dos temas centrais dessa narrativa, transformando-se em uma espécie de elo de amizade entre os personagens. No extremo, ela influencia até mesmo o ritmo narrativo, manifestando-se nas “viagens” de cada personagem, como citou Chico Buarque em um de seus comentários à obra. Em torno da maconha, desdobra-se um vocabulário intricado e uma sociologia que o livro explora em minúcias, muitas vezes com pitadas de humor.

Poderia citar outros escritores que foram ousados e visionários, que não apenas transformaram o modo como contamos histórias, mas também desafiaram as expectativas do público. Esse ciclo contínuo de reinvenção e desafio das convenções literárias é crucial para o progresso da arte literária.  Ao se aventurarem por territórios desconhecidos da expressão literária, esses autores não apenas romperam barreiras, mas também moldaram a compreensão coletiva do que a literatura poderia ser. Suas obras muitas vezes foram recebidas com ceticismo inicial, mas, ao desafiarem as normas, abriram novos horizontes para a apreciação da arte da escrita.

Apesar de suas diferenças temporais e estilísticas, Raquel de Queiroz e Geovani Martins, reforçam a importância de questionar as normas e de permitir que a literatura evolua de maneiras inovadoras. Suas obras desafiam o status quo, oferecendo aos leitores uma experiência literária única e provocativa. Assim, no cenário literário brasileiro, a inovação continua a ser um catalisador vital para a expansão de horizontes e a promoção de diálogos significativos sobre temas diversos.

* Toni Ramos Gonçalves

Escritor, editor, ex-presidente e um dos fundadores da Academia Itaunense de Letras – AILE. Graduando em História e Jornalismo.